Em Vila Meã, onde as ruas guardam histórias de vida, Cidália Fernandes encontrou o seu lugar. Professora de português e alemão, autora de mais de 50 livros e cerca de 20 participações noutros projetos literários, é também diretora do jornal local. Cidália Fernandes tornou-se uma figura incontornável na promoção da leitura e da escrita em Portugal, sobretudo junto de crianças e jovens.
Natural da aldeia de Vieiro, concelho de Vila Flor, fixou-se em Vila Meã, depois de ter conhecido o marido, Aníbal Magalhães. A infância na aldeia marcou-a profundamente. Foi ali que a professora primária lhe abriu a porta para o mundo da leitura e da escrita, emprestando-lhe os livros que os filhos já não queriam. “Porque ali estava circunscrita ao espaço físico dos montes e ao espaço social da comunidade, a leitura constituiu uma porta aberta para percorrer outros caminhos, para abrir novos horizontes, em suma, para viajar”, recorda, com gratidão. Nutriu-se de um deslumbramento contínuo que a incentivou a partilhar a magia dos livros com outras crianças, inspirando-a a tornar-se professora e, mais tarde, escritora.
“Quando era criança, sempre que questionada, respondia que queria ser professora e escritora. As pessoas riam-se de mim, achavam que eu estava a brincar; eu pensava, embora não o revelasse por inibição, que, se os escritores, uma espécie de deuses, me abriram a janela da sabedoria, se me permitiam aceder ao conhecimento, eu tinha de escancarar a mesma janela às outras crianças”, afirma.

O chamamento da escrita
A paixão pela escrita nasceu muito cedo. Recorda-se de, jovem ainda, declamar poesia e sentir o público preso às suas palavras, ao seu entusiasmo, às suas emoções. O fascínio pela poesia, influenciada sobretudo por Fernando Pessoa, sempre a acompanhou. Mas foi o pedido do filho mais velho — “inventa-me uma história em vez de ler uma existente” — que a levou a aventurar-se nas histórias infantis. A primeira, sobre uma menina com um chapéu e uma aranha, foi recebida com muito entusiasmo: “Não gostei, adorei”, respondeu o filho. “Essas palavras foram o estímulo impulsionador, que me conduziram até ao momento. E continuam a sê-lo. A criação e a arte precisam também de impulsos válidos para se manifestar”, acrescenta.
A partir desse episódio, nasceu o seu primeiro livro, Contar, Ouvir, Sonhar…, uma coletânea de 14 histórias, protagonizadas por animais, publicado pela editora Paulinas, no ano 2002. Parte das receitas foi destinada ao Centro Polivalente de Vernasse, em Baucau, Timor Leste..
Os animais como presença constante no mundo da autora
Os animais são uma presença constante nos seus livros, herança da convivência com animais domésticos na infância e resultado do respeito que lhes dedica. Para Cidália Fernandes, que desenvolveu uma aversão, em criança, à matança do porco, os animais são “nossos vizinhos neste planeta”, e a literatura infantil deve alertar para a necessidade de respeitar o mundo animal. Mas a sua escrita não se limita aos mais novos; além da literatura infantil e infantojuvenil, é autora de manuais escolares, livros técnicos de apoio ao estudo e, desde 2014, de romances.
O primeiro, A Casa da Lua, abriu-lhe as portas para outros temas, como o impacto das redes sociais, Em Redes, ou a mitologia, Hélios, a Jornada Solar, ou ainda para o nosso passado histórico, como Angélica, história de ser e do não-ser e Antão, no início era o medo (publicado em junho deste ano). É também autora de livros de poesia: Só invejo os Pássaros, e Flama. Publicou também Só, Anto, Memórias de António Nobre.
Aquando da comemoração dos 50 anos do 25 de abril, publicou uma peça infantojuvenil de teatro denominada E Há Cravos Felizes. Os temas são muitos e variados.Refira-se que muitos dos seus títulos de literatura infantojuvenil integram o Plano Nacional de Leitura (PNL), como O Menino que não gostava de sopa ou A menina que não gostava de fruta.

A escrita como autoconhecimento
Cidália Fernandes vê-se como uma escritora multifacetada, que recolhe ensinamentos profundos para os expandir através da literatura. Acredita que o talento existe em cada um de nós, precisa apenas de ser descoberto e de ser libertado, como um “incêndio interior dirigido para a escrita”, no seu caso. A escrita é, para ela, refúgio e abrigo. Acrescenta ainda que escreve para se completar e para se descobrir também, pois “nunca nos conhecemos verdadeiramente, nem sabemos onde se encontram os nossos limites”.
“Eu sou estes livros – sou a voz que defende aquele professor, sou também a Lua, a Selene que encontra, desafia e protege o jovem Hélio. Por exemplo, num destes romances, incorporo uma presença que, embora nunca seja explicitamente nomeada, acompanha a vida das demais personagens. Só no final os leitores descobrem que é a narradora-autora. E estou sempre presente, não apenas como narradora, mas transportando também a minha infância. O autor espalma-se na sua obra, de uma forma ou de outra, explícita ou implicitamente” acrescenta.
Uma missão para promover a escrita e a leitura
Para esta professora e escritora, a promoção da leitura e da escrita é uma missão, participando regularmente em iniciativas de promoção da leitura e escrita em escolas e para o público em geral, um pouco por todo o país.
Explica que aceitou dirigir o Jornal de Vila Meã para se integrar na comunidade, sentindo-se parte dela. “Até então, era simplesmente a esposa do Aníbal”, graceja.
Diz ainda que escrever o editorial do jornal mensal é um “desafio” e um “stress positivo”, contando que é uma forma de continuar a impulsionar a sua escrita e a de outros.

A paixão pelo ensino mantém-se, apesar dos desafios
Apesar das frustrações com o sistema educativo atual — “há muito tempo que os professores são relativizados” —, garante que mantém a paixão pelo ensino. Defende que o ensino público não deve estar associado às forças políticas, deve antes ser gerido de uma forma estruturada, consciente e sábia, evitando mudanças constantes nos projetos educativos.
Salienta que os alunos do secundário já têm opiniões formadas e que as novas tecnologias são um desafio, mas enfrenta-os com perguntas que exigem compreensão profunda dos textos. Defende o fim dos telemóveis nas escolas e a diversificação dos ensinamentos, sugerindo a rotatividade de professores, entre outras medidas.
Literatura como legado para abrir horizontes
Com mais de 70 publicações, incluindo participações em antologias e traduções para espanhol, francês, inglês e alemão, e distribuição em Portugal, Espanha e Brasil, Cidália Fernandes continua a investir na inovação, implementando QR Codes em algumas das suas publicações, anteriormente acompanhadas por CDs. Alguns dos direitos de autor revertem a favor de instituições, incluindo a UNICEF.
Para ela, a literatura é um legado vivo, uma forma de abrir horizontes e educar novas gerações.

“Eu falo com muito carinho de todos aqueles que me ensinaram, porque aprendi com eles e é esse sentido de gratidão que me acompanha. Sinto que tenho de passar o testemunho. Entristeço quando algumas pessoas me acusam de estar na literatura por egoísmo ou por vaidade. Não é verdade, quero partilhar apenas o que aprendi, com muita honestidade e transparência, para que outros possam fazer o mesmo”, conclui.