Canadelo: este ano não se cumpre a “Lenda de S. Pedro”

A procissão em honra de S. Pedro percorre todas as ruas da aldeia de Canadelo (Foto AM).

Se, este ano, em Canadelo, se cumprisse a “Lenda de S. Pedro, as festas em honra do Santo – o terceiro mais popular, depois de Santo António e S. João – teriam lugar a uma terça-feira (29 de junho). Muitos dos canadelenses emigrados teriam “tirado” férias para estarem presentes e aquela mítica aldeia do Marão, que passa por um acelerado processo de envelhecimento e desertificação, voltaria, por um ou dois dias, aos seus tempos de glória.

Cumprir-se-ía a tradição e viria ao de cima a identidade de quem ali nasceu e viveu, bem ilustrada, de facto, na chamada “Lenda de S. Pedro”, segundo a qual, em tempos idos, S. Pedro, que habitava um cume do telhado da Igreja, zangado porque não eram realizadas festas em sua honra, “desertou” para umas fragas próximas, em território neutro, onde, dias mais tarde, recebeu uma delegação da freguesia, que lhe implorou o regresso. S. Pedro anuiu, mas com a condição de, todos os anos, lhe ser feita uma festa, a 29 de junho, independentemente do dia da semana. 

E assim é, desde então. Este ano, porém, porque o mundo está tomado por uma pandemia, não será cumprido o desejo do Santo. Como, de resto, aconteceu o ano passado.

A não realização das festividades será mais uma “machadada” na identidade e nas referências e cultura dos que ali nasceram e cresceram, a grande maioria dos quais emigrou, dando início ao declínio da aldeia, que remontará aos anos da emigração transatlântica (meados do século XX) e se agravou com a emigração para a Europa, nas décadas de 1960 e 1970.

Em 1950, viviam em Canadelo 540 pessoas. O censo de 2011 registou apenas 121 residentes, sendo que 37,19% tinham mais de 65 anos. Ou seja, Canadelo perdeu 429 habitantes em 61 anos e nos que restam há uma grande percentagem de idosos.

No início da década de sessenta do século XX moravam na aldeia 482 pessoas. Os homens trabalhavam maioritariamente na floresta, na apanha da pinha, eram resineiros ou cantoneiros e as mulheres cuidavam da casa e dos filhos e praticavam uma agricultura de subsistência. 

Um morador, dos poucos que frequentou o ensino superior e se licenciou, recorda que a iluminação era feita à luz da candeia e que em Canadelo havia, à época, uma mercearia, onde os residentes se abasteciam dos produtos que o campo não dava. As pessoas compravam fiado e pagavam à semana. Nos tempos livres de domingo, ía-se ao baile, à tarde, ou jogava-se à malha e à sueca.

O correio chegava a Canadelo levado por uma habitante que, logo pela manhã, se fazia ao caminho em direção à cidade, levando, na ida, num saco de lona verde, lacrado, as cartas dos familiares ausentes, as chamadas para a tropa e os aerogramas dos soldados que lutavam na guerra colonial, em África. 

Ao todo, a “recoveira” percorria, a pé, 32 quilómetros e quando, pelo fim da tarde, chegava a Canadelo, para além de levar o correio, já tinha também “aviado” os recados que outros habitantes lhe haviam solicitado.

As idas à cidade pelo correio continuaram durante bastantes mais anos e o volume do saco de lona foi mesmo aumentando, pelas novas que passou também a trazer sobretudo de França, para onde os homens haviam começado a emigrar em massa. O mesmo habitante com quem AMARANTE MAGAZINE falou, recorda que iam a salto, pagavam 11 contos (22 euros), mas nem sempre corria bem. Duma das vezes, algures próximo da fronteira de Chaves, foram presos 40, sendo que cinco ou seis eram de Canadelo.

Um futuro novo para Canadelo?

E foi assim, com partidas constantes para o estrangeiro e para outros locais e cidades dentro do país, que Canadelo se foi desertificando, sendo, hoje, o que os geógrafos e sociólogos chamam um “território de baixa densidade”. E, como se viu, onde uma boa parte da população é idosa.

Mesmo sendo um “território de baixa densidade”, a identidade e o sentido de pertença de quem reside em Canadelo ou dos ausentes que ali nasceram é considerada muito grande. E isso joga a favor do futuro da aldeia, podendo ser um dos fatores âncora que lhe há de dar nova vida, enquanto oportunidade para a mudança.

Isso mesmo é reconhecido no estudo “Aldeias com Futuro”, coordenado pelo geógrafo Rio Fernandes, com o qual se constatou “uma forte vinculação à aldeia, motivada por um movimento associativo dinâmico e por uma relação forte da comunidade emigrante, e a existência de valores culturais, designadamente no contexto de festas e eventos”.

O estudo “Aldeias com Futuro” teve como aldeias-alvo as que, no Douro-Tâmega, se situam a mais de 600 metros de altitude e pretendeu “avaliar o valor económico e social das aldeias serranas”. Canadelo, constata-se, apresenta algumas particularidades relativamente a outras aldeias da serra do Marão, designadamente por ser um lugar de paróquia e sede de freguesia, o que permite a existência de igreja e motiva uma organização distinta do espaço.

Canadelo é, ainda, reconhece o estudo, uma aldeia com elevado potencial turístico, para o que concorrem os valores ambientais (com o rio Olo em primeiro plano) naturais e paisagísticos, bem como a sua classificação como aldeia preservada. 

A aldeia oferece, já hoje, uma casa de Turismo Rural (a Casa da Nogueira) e uma casa de alojamento local (Casa do Engenho), ambas com grande procura, sobretudo a partir do mês de maio e até ao final de outubro, período em que a ocupação chega a ser de de cem por cento, segundo a proprietária de uma das casas. Procuradas são também habitações para compra, que, no entanto, já vão rareando.

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