Senhor Fidalgo: o último merceeiro de Baião

Os números são incontornáveis e impressionantes. Há mais de 70 anos que em Baião é muito comum ouvir-se dizer que o “Fidalgo tem de tudo”. E é verdade. Como por milagre, quando o que se procura não se encontrar em mais lado nenhum, basta passar no Fidalgo. Mas, afinal, quem é este homem que, com 91 anos, continua a trabalhar como se tivesse 20? 

A mercearia do Fidalgo carrega as marcas do tempo. No exterior, o edifício precisa de ser reabilitado. No interior, as paredes, o chão, os móveis, os materiais, tudo parece precisar de descanso. Há 72 anos que apenas ao domingo este espaço fica às escuras. Só as frutas e legumes, que reluzem à entrada, e que todas as semanas o seu proprietário faz questão de ir escolher e carregar a quase 80 quilómetros de distância, parecem despertar o interesse por aquele local. Lá dentro, sentado numa “cadeira de piquenique”, de costas inclinadas, posicionada estrategicamente com vista para a porta da entrada, acompanhado pelo som de um rádio antigo e de um frio cortante que atravessa a alma, está o Sr. Fidalgo. 

Aproxima-se de nós e chega a comover-nos secretamente pela lucidez, perspicácia, inteligência e energia com que fala connosco. Quem diria que daqui a 9 anos completará um século de vida! 

Arnaldo Fidalgo. É assim que se chama o último merceeiro no ativo que ainda resta no concelho de Baião. Se as mercearias de outros tempos são já uma miragem em quase todo o país, é pelas mãos deste homem culto, sabedor e curioso que em Baião ainda resiste este pedaço de história. 

O Sr. Fidalgo, como é conhecido, é um filho adotivo de Baião. Nasceu na Gafanha da Nazaré no seio de uma família humilde que “trabalhava campos próprios e que nunca foi caseira de ninguém”. A este propósito, lembra a surpresa que lhe causou o facto de, em Baião, há 70 anos, quase todos os campos serem agricultados por caseiros. “A tradição era motivada por usos da idade média. Ter um caseiro era uma honra naquela altura. Em Baião isso fazia do dono uma pessoa importante. Veja, menina, que quando patrão e caseiro tinham o mesmo nome, como é exemplo o nome António, o patrão dirigia-se ao caseiro pelo diminutivo. Na Gafanha da Nazaré isso não existia”, começa por contar. 

Os pais, donos de uma marinha de sal e pessoas de labor, tiveram 11 filhos, mas só 6 sobreviveram. Mesmo “com fracos estudos” foram visionários. “Incentivaram-me a mim e aos meus irmãos a estudar e deram-nos a oportunidade de podermos aprender e lutar por profissões que, naquela altura, eram muito respeitadas e afamadas. Foi o que me aconteceu. Tive uns pais excecionais”, conta. 

Estudou até aos 17 anos na Gafanha da Nazaré até que decidiu partir para Coimbra, para fazer um estágio de meio ano nos CTT, que antecedia um outro em Aveiro, para onde foi viver de seguida. No exame final de acesso à profissão foi um dos melhores, o que lhe deu a oportunidade de ir chefiar um posto dos CTT em Penela, tinha acabado de fazer 20 anos. “Ganhava 2500 escudos por mês. Era um cachopo. Estive lá apenas 3 meses. Tive que me ausentar porque fui obrigado a cumprir o serviço militar. Estive na tropa, em Tancos e no Porto, durante um ano. Era miliciano, uma espécie de oficial”, recorda. 

Assim que saiu da tropa voltou para os Correios, desta vez em Aveiro, mas haveria de lá ficar pouco tempo. Um concurso para entrar como quadro nas Finanças chamou-lhe à atenção. De 1800 candidatos submetidos a provas, este, hoje merceeiro, conseguiu o 9º lugar, o que lhe valeu colocação imediata. E é neste momento que chega ao concelho onde haveria de viver o resto da sua vida. 

A chegada a Baião  

O nome Baião não lhe era estranho, “até porque nos Correios todos tinham um conhecimento de geografia acima da média”. Chega a Baião aos 22 anos, carregado com os sonhos próprios da idade. ” Dentro do edifício primitivo da Câmara Municipal funcionavam as finanças. Foi para lá que fui trabalhar”, lembra.

Quando chegou, encontrou um concelho onde a maior parte dos habitantes eram analfabetos. “As pessoas sobreviviam com aquilo que a agricultura dava e as condições de vida eram muito duras”, lembra. “A forma de pensar dos habitantes deixava-me chocado. Nunca tinham saído daqui. Nunca tinham visto nada além disto. Era tudo muito diferente da terra onde nasci, que estava décadas mais avançada a vários níveis, além de eu ter tido a sorte de ter sido criado no seio de uma família com muita verticalidade. Fui vivendo a adaptação dia após dia”, prossegue. 

Dormiu quase dois anos na Pensão Borges, a residencial histórica que ainda hoje se encontra em funcionamento, muito perto da sua mercearia, e foi o coração que o fez mudar de vida. O romântico Fidalgo enamorou-se por uma baionense e casou com ela. Desta união nasceram 5 filhos. 

A partir daqui tudo muda: depois de casado deixa as Finanças e adquire a mercearia onde ainda hoje trabalha. “Deixei as finanças porque fui afastado. Apercebi-me de uns esquemas estranhos, como ainda hoje existem e, ao ser chamado a pactuar com eles, recusei. Depois disso nunca mais tive sossego. Os meus olhos e ouvidos passaram a ser os inimigos número 1 do edifício das Finanças. Vim-me embora. Saí com a consciência e a honra intocáveis”, conta. “Comprei esta mercearia, que já existia, porque o seu proprietário enfrentava vários problemas de saúde. Aqui, vendiam-se produtos alimentares, drogaria, ferragens. Também havia vinho ao copo e iscas de bacalhau com sêmea a toda a hora”, recorda. 

Renovou a mercearia, alargou-a e abasteceu-a com mais produtos, mas rapidamente percebeu que queria mais. “A projeção da mercearia foi total, de tal ordem que tive que arranjar duas empregadas”, conta. Foram estas empregadas que acabaram por “permitir” que o patrão se ausentasse com outra frequência. “E foi precisamente nestas ausências que decidi começar a vender, porta a porta, materiais de construção civil. Comecei com um camião pequeno e, muito pouco tempo depois, comprei outros quatro e contratei mais empregados. Foram precisos 30 anos para que eu deixasse aquela vida. Foi uma vida de muito sacrifício e de muito trabalho”, lembra. Condição que lhe viria, muito anos depois, a custar o divórcio. 

Refez a vida com outra companheira, com quem teve dois filhos, e nunca desistiu da mercearia ao longo do tempo. Nos “intervalos” fez parte da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Baião e foi um dos grandes impulsionadores do 25 de abril no concelho. Diz que não se identificava com o Estado Novo mas hoje, “depois de ver o que os políticos fizeram com Portugal” não tem dúvidas de que “o regresso da ditadura ia dar uma lição a todos aqueles que usam a pátria para se servir e não para a servir”. A sua cor política é a “doutrina cristã”. Em Baião fez parte do desenvolvimento do concelho, sobretudo ao nível das acessibilidades, e foi um dos fundadores da Escola de Música da Casa do Povo de Campelo. As suas decisões foram cruciais em momentos chave da história recente de Baião. Também por isso é hoje na terra um homem muito respeitado. 

As rotinas sagradas 

A sua energia é invejável. Abre a mercearia às nove horas da manhã e só a fecha às sete da tarde. Na pausa para almoço faz a sua própria comida. Diz que não sabe cozinhar mas entende-se bem com todas as misturas que faz na panela. Às sextas-feiras vai ao Porto comprar material para a mercearia. A sua carrinha castanha, antiga e comprida é inconfundível. Compra nos grossistas porque “têm um preço mais airoso e maior diversidade de escolha”. Gosta de ver os produtos que compra e desde uma ficha elétrica, uma panela de ferro, sacos de vindima, um gel de banho, um pacote de arroz ou um parafuso, vende um pouco de tudo. Faz as contas à mão e pesa os produtos numa balança com décadas. Tem pena que “o Intermarché e o Mini Preço tenham vindo estragar o negócio”, mas garante que “tem, no seu conjunto, na parte das frutas e hortaliças, melhores preços que eles”. Ao domingo de manhã vai à missa e toma o pequeno-almoço numa confeitaria onde já não precisa de pedir o que quer. Lê religiosamente o jornal “O Diabo” e, à tarde, “faz a escrita das coisas da loja”. A rotina repete-se todas as semanas. 

Vive sozinho e, na entrada da sua casa dois cães estão de guarda para o alertar, caso um intruso queira espreitar. Durante a semana houve várias histórias tristes, outras alegres. “Na loja, entra desde o iletrado ao professor universitário”. É também por isso que não quer deixar de trabalhar na mercearia. Gosta do serviço que faz e do convívio com as pessoas. Considera que trabalhar o torna mentalmente saudável e lhe exercita o corpo e a mente. Podia viver da reforma mas é feliz a trabalhar. “Há quase 80 anos que assim é”. 

É um homem informado e esclarecido. É contra o aborto e a eutanásia. Não simpatiza com touradas nem com gente que não quer trabalhar. Diz que o mundo está de pernas para o ar. Pede-nos para não nos admirarmos se, “de uma hora para a outra, um maluco fizer um disparate”. Vão ser cada vez mais os que vão fazer disparates, avisa. O mundo está um reboliço”. A culpa, essa, “é dos humanos”. Daqui a 50 anos não vai haver quem cultive as terras”, garante. 

E o futuro da mercearia? Diz que “a Deus pertence”. Lembra que, hoje em dia, “o povo gosta de malta nova atrás do balcão”, mas deixa um conselho aos jovens: “para um negócio vingar, tem que haver honestidade”. 

A Deus pertence” a mercearia e “a Deus pertence” o seu futuro. Portanto, enquanto “Deus quiser”, a Casa Fidalgo vai continuar a perpetuar o passado, nem que seja como uma espécie de museu. Uma verdadeira preciosidade histórica que resistiu aos tempos, mantendo-se fiel, “até ao empregado” – um homem cuja vida é uma verdadeira lição de resiliência – às mercearias de há 70 anos. 

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