Mota e Costa: um homem bom e um músico de excelência

Mota e Costa (Foto AM).

A música era o que o movia, mas Mota e Costa distribuiu também o seu talento pelo teatro, organizando rábulas e revistas à portuguesa, fosse na Tabopan, onde trabalhou, ou animando fins de semana no Cineteatro de Amarante, onde conduziu o “Clic-Clac” e fez nascer o Festival da Canção do Tâmega, o maior da música ligeira portuguesa.

Amarante viu partir, em dezembro de 2022, aos 84 anos, Manuel do Carmo da Mota e Costa. Homem bom, generoso, Mota e Costa, como era conhecido, tem o seu nome marcadamente ligado à música portuguesa, tendo sido maestro, compositor e músico. Dominava vários instrumentos, sendo reconhecido como exímio tocador de acordeão. Muitos intérpretes, de resto, não dispensaram os seus acordes, nas mais variadas gravações em estúdio.

Dirigiu a Tuna de Gondar, que havia sido criada por seu pai, Armando da Mota e Costa, fundou várias escolas particulares de música (em Amarante, Trofa, Marco de Canaveses…), grupos corais e orfeões.

Colaborador da empresa Tabopan e muito próximo do seu fundador, José Abreu, Mota e Costa desenvolveu ali, impulsionado pela FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), uma atividade de excelência na área da música e da animação, criando, a partir de uma pertinente investigação etnográfica, o Rancho Folclórico da Tabopan.

Naquela empresa promoveu numerosos espetáculos musicais e de teatro. A Tabopan foi, de resto, o “berço” da Festada do Tâmega, um grupo de música tradicional portuguesa criado por Mota e Costa e que se notabilizou nas décadas de 1970 e 1980. Editada pela Roda, do grupo Vadeca, a Festada do Tâmega viria a conquistar dois discos de prata.

(António Mendes da Silva, que foi vocalista do Conjunto Mota e Costa, recordou, em conversa com AMARANTE MAGAZINE, a sua passagem por Angola em 1972, mobilizado para a guerra colonial, onde as rádios passavam discos da Festada do Tâmega, ajudando os militares a mitigarem as saudades da “Metrópole”).

Programador do antigo Cineteatro de Amarante – onde pontificavam as rábulas e o teatro de revista -, foi também ali que, em 1979, Manuel do Carmo da Mota e Costa promoveu o primeiro Festival da Canção do Tâmega, que viria a ter dezasseis edições e a ser considerado o maior da música ligeira portuguesa.

Nos anos seguintes, o festival passaria para as instalações do Mercado Municipal e, posteriormente, para o Parque do Ribeirinho e para a Ínsua dos Frades, em pleno leito do rio Tâmega, abrindo-se, nas últimas edições, a compositores e intérpretes da Galiza, ganhando, por isso, a designação de “Ibérico”.

Conhecido em todo o país foi, também, nos anos 60,70 e 80 do século passado, o Conjunto Mota e Costa, um grupo de baile que animou inúmeros eventos e gravou vários discos.

O grupo teve, ao longo dos seus cerca de 25 anos de existência, diversas formações, sem que a frequente rotação de elementos alguma vez afetasse a qualidade do seu desempenho. Ao seu leme esteve sempre o homem que lhe deu o nome e, muito eclético, o grupo tanto era requisitado para os salões da burguesia do Norte, abrilhantando casamentos e outros eventos, como atuava em festas populares, ou era formação residente de salas de baile, como foi o caso da de Torre de Nevões, em Marco de Canaveses, durante cerca de uma dezena de anos.

Nascido em Amarante, em 1958 (e “oficialmente” extinto em 1983), o Conjunto Mota e Costa começou por “entrar na onda” do final dos anos 50, tocando sobretudo música italiana, onde pontificavam os nomes de Mário Marini, Renato Carazoni e Dominique Modugno. Isto, com música portuguesa à mistura e, claro, muitas valsas e tangos.

A formação inicial do Conjunto Mota e Costa, que, rapidamente, conquistaria o seleto “Clube Amarantino” e os frequentadores dos Bailes no Parque (florestal), era constituída por Mota e Costa (acordeão e piano); Caldas Fernandes (piano); Toninho Silva (percussão); Manuel Braga (guitarra); João Monteiro/Toni Lima (bateria); Carlos Bucha (contrabaixo) e Pedro Macedo (vocalista e serrote).

Com os anos, o Conjunto Mota e Costa foi, naturalmente, mudando de elementos e alargando o seu reportório que, contudo, se manteve variado quanto aos géneros e adaptado a todos os ambientes: da música popular e tradicional portuguesa ao jazz tudo era possível com o grupo, que, nas suas atuações, trocava de vocalista conforme as apetências linguísticas de cada um.

A António Macedo, por exemplo, que integrou uma das últimas formações do grupo (mas também a Arnaldo Freitas, numa fase anterior), cabia-lhe cantar em português, enquanto Mendes da Silva subia ao palco quando se tratava de interpretar Frank Sinatra ou Tony Bennet. Mendes da Silva cantou a primeira vez com o Conjunto Mota e Costa aos 15 anos.

Em 1988, trinta anos depois da formação do Conjunto, o jornal Repórter do Marão organizou, nos Arraiais de S. Gonçalo, a “Festa do Conjunto Mota e Costa”, tendo conseguido juntar, em palco, todos os elementos da formação inicial.

Marcado pelo espírito generoso e solidário do seu criador, o Conjunto Mota e Costa teve um papel relevante na consolidação da Cercimarante (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas), fundada no final da década de 1970, como recordou a AMARANTE MAGAZINE António Pinto Monteiro, seu promotor e primeiro Presidente.

De facto, durante seis anos, Mota e Costa e o seu conjunto palmilharam as estradas da Europa, sobretudo as de França e da Alemanha, indo ao encontro de comunidades portuguesas, em busca de apoios, seus e das cidades de acolhimento, para a Cercimarante, num trabalho gracioso e sem contrapartidas, que haveria de ajudar ao crescimento daquela organização

Amigo próximo de Shegundo Galarza, Mota e Costa dirigiu várias orquestras, entre as quais a Colúmbia, que, durante várias edições, foi orquestra residente do Festival da Canção do Tâmega, tendo como maestro Paulino Garcia.

História por fazer

Escrito assim, parece fácil. Não é, contudo, quando se pretende traçar o percurso e documentar o trabalho de exceção de alguém que, desde logo por desprendimento, não tinha por hábito arquivar e guardar evidências de uma vida invulgar ligada à música e às artes performativas

E se ao desprendimento de Mota e Costa se juntarem os tempos atribulados que se viveram a partir de 1974, marcados por agitação social, mas também por um grande desprendimento que dispensava “comendas”; e porque houve roturas em muitas organizações (editoras e outras), então percebe-se que sejam escassos os registos e as fontes a que se pode aceder.

Um exemplo: a Fonoteca do Porto, que guarda alguns discos da “Festada” e do Conjunto Mota e Costa, não dispõe de quaisquer registos históricos ou biográfico daqueles grupos ou dos seus elementos, nem, tão pouco, sobre as suas datas de fundação!

Da Tabopan, outro exemplo, onde nasceu a Festada do Tâmega, que começou por ser a “tocata” do rancho folclórico daquela empresa, não restam, infelizmente, memórias que não sejam as transmitidas por via oral!

Existem, dispersos ou em colecionadores (alguns) velhos discos em vinil, cujas músicas fizeram durante muitos anos as “miras” da RTP – Rádiotelevisão Portuguesa e passavam na Emissora Nacional e nas emissoras regionais da antiga Rádiodifusão Portuguesa (RDP), ou nas rádios dos países lusófonos, durante as guerras coloniais.

Sou filho de um grande músico

Nos últimos meses da pandemia do covid 19, já sem confinamentos, tivemos, com Mota e Costa, em sua casa, algumas conversas, que pretendiam registar, para memória futura, aqueles que foram os principais momentos da sua vida de músico e criador. Infelizmente, o seu falecimento deixaria inacabados os nossos diálogos.

Do que registámos, reproduzimos, na primeira pessoa, o essencial, certos de que há um longo trabalho de pesquisa a fazer sobre a obra de Manuel do Carmo da Mota e Costa, que teve nas suas equipas, como executantes ou técnicos, outros nomes de Amarante: Manuel Braga, Rogério Carvalho, António Mendes da Silva, António Macedo, Quintino Tamegão, Arnaldo Freitas.

Eis Mota e Costa na primeira pessoa:

Sou filho de um grande músico. O meu pai era um músico de excelência e um exímio instrumentista. Tocava violino como ninguém.

Chamava-se Armando da Mota e Costa e fundou aqui, na freguesia de Gondar, ainda eu não era nascido, uma Tuna. Quando tinha nove anos, vim cá visitar o meu avô, que tinha um violão, feito com madeiras nobres. Ofereceu-mo. Não tinha cordas, arranjei umas e comecei a tocar violão.

Foi o meu primeiro instrumento. E então iniciei-me na Tuna, a aprender solfejo, como todos os outros. A aprendizagem demorava 10 meses, a um ano, e só depois é que pegávamos nos instrumentos.

Aprendido o solfejo, o meu pai passou-me o violão para as mãos e comecei a tocar. Quando tinha 13, 14 anos, surgiu a necessidade de haver um acordeão na Tuna, que era um instrumento que dava vida às tocatas e que já era utilizado de Alcobaça para baixo.

Veio, então, um acordeão para a Tuna, mas não me foi entregue. Foi-o a um rapaz que tocava banjo e que começou a aprender, mas mal, porque não havia quem ensinasse. E quando se começa mal a aprender um instrumento, nunca mais dá certo. Sem se subir os degraus que é imprescindível subir-se, saltando etapas, não resulta. E foi o que aconteceu com esse rapaz que voltou para o banjo.

Passei eu para o acordeão. O meu pai era amigo íntimo de Eurestes Miranda, ao tempo uma referência da música em Amarante, criava peças fantásticas, tinha um grande reportório. Amarante esqueceu-o, nunca ninguém lhe fez a homenagem que ele merecia, como nenhum outro.

O meu pai falava muito com o senhor Eurestes Miranda, e disse-lhe da necessidade de eu aprender a tocar acordeão. Por essa altura, veio a Amarante um circo, o circo ROOF, que, como era hábito, então, tinha uma orquestra, neste caso composta por doze elementos. O senhor Eurestes relacionava-se muito bem com a gente do circo e disse ao meu pai que da orquestra fazia parte um grande acordeonista, o Senhor Eurico, com quem eu poderia iniciar-me.

No dia seguinte, tive as primeiras luzes de acordeão com o Senhor Eurico e enquanto o circo esteve em Amarante fui aprendendo o instrumento. Mais tarde, morando no Porto, voltei a procurar o Senhor Eurico, que foi o meu primeiro grande professor de acordeão. Continuei a estudar o instrumento e, mais tarde, tive os ensinamentos de dois professores estrangeiros, um alemão e outro italiano.

Matriculei-me no Conservatório de Música do Porto, mas aí não era lecionado o acordeão. Tive aulas de piano. Posteriormente, frequentei, também no Porto, um instituto de música onde o acordeão já era estudado. Depois, foi suor e inspiração: trabalhei, trabalhei e fiz, realmente, do acordeão o meu instrumento principal, embora continuasse a tocar e a estudar outros. A prática fez de mim um acordeonista.

Sobre a Festada do Tâmega

A Festada do Tâmega nasceu a partir do Grupo Folclórico da Tabopan.

Quando vim trabalhar para a Tabopan, com 25 anos, já trazia credenciais de músico. Tinha tocado em grupos do Porto e havia fundado o conjunto Mota e Costa, que criei quando tinha 18 anos. Tocava com o Manuel Braga, o Pedro, o Toninho da Farmácia, o Berto, o Pedro Macedo, que era vocalista, o Arnaldo Freitas.

Uma noite fui, com o conjunto, fazer um baile à casa de férias do senhor Pinto de Magalhães, na Granja, onde estava o senhor José Abreu, que precisava de montar um sistema de cobranças que não obrigasse a andar de terra em terra a receber faturas. Enviávamos as letras com oito dias sobre o prazo de vencimento, com ou sem despesas, conforme o cliente fosse, ou não, confiável.

No fim do baile, o senhor Pinto de Magalhães veio ter comigo e disse-me que teria que vir para Amarante montar esse sistema de cobrança, continuando a trabalhar para o banco. E assim foi: durante meio ano foi o banco que me pagou o salário. Quando ia regressar ao Porto, o senhor José de Abreu não me deixou ir.

Fiquei, então, na Tabopan. Por essa altura, o Estado tinha criado a FNAT (Federação Nacional para a Alegria no Trabalho), uma organização do anterior regime, mas nascida em boa hora e que, não há dúvidas, fez evoluir culturalmente muita gente.

A FNAT produzia espetáculos regularmente e a Amarante veio, muitas vezes, o maestro Resende Dias, transmitindo-nos a sua experiência. A Tabopan, que empregava muita gente, foi desafiada a ter um programa de animação, que incluiu a criação de um rancho folclórico. Ora, a constituição de um rancho folclórico pressupunha, também, a criação de uma festada, que criámos.

O Grupo Folclórico da Tabopan fez uma carreira brilhante, com a participação em inúmeros festivais e várias presenças na televisão. Na maioria das saídas, adotava o nome de Rancho Folclórico de Amarante, para evitar a referência a uma marca comercial.

A Festada, que nunca deixou de acompanhar o rancho, foi criando um percurso paralelo, com um reportório que ia muito para além das músicas que o rancho dançava e que resultaram de uma pesquisa dirigida pelo professor Mota Leite. Essa pesquisa demorou para cima de um ano e foi feita nas mais tradicionais aldeias e freguesias de Amarante.

O Cineteatro de Amarante, o “Clic-Clac” e o Festival do Tâmega

Já conhecia o Cineteatro das revistas da Tabopan que ali encenávamos.

Na sequência da compra do Cineteatro pela família Mota, o Zeca Pedro tomou aquela sala de arrendamento. 

Entre nós os dois havia um acordo. Ele escolhia e contratava os filmes que eram exibidos e eu tratava da área da animação.

De 15 em 15 dias tínhamos o “Clic Clac”, um programa que eu criei tendo como inspiração o Zip Zip (1969) da tripla Carlos Cruz, Raul Solnado e Fialho Gouveia.

Entrevistávamos as pessoas com maior notoriedade em Amarante. As entrevistas eram feitas, sobretudo, por jovens da altura, que integravam o movimento Interact, do Rotary Clube.

Tal como no Zip Zip, o Clic Clac vivia muito do humor e da crítica social, parodiando acontecimentos locais. O Contrarregra era o (Quintino) Tamegão, como sempre, nos meus espetáculos. Não falhava uma.

Havia muitas atuações musicais, com música ao vivo.

O Festival do Tâmega foi a maior organização de sempre em Amarante. O Festival tinha duas vertentes: uma com música regional e outra com música ligeira, com premiações diferentes

Criámos uma Orquestra propositadamente para o festival, a Colúmbia, dirigida pelo maestro Paulino Garcia (falecido em 2018).

O festival do Tâmega nasceu no Cineteatro de Amarante, onde teve lugar a primeira edição. Naquela altura, a sala garantia-nos, pelo menos, 1 200 lugares para público.

Sobre José Abreu

O senhor José Abreu era um lutador e um homem fantástico.

O que se disse dele, em determinado período da sua vida, era tudo fruto de inveja e fantasias dos “velhos ricos”, que, com desdém, lhe puseram o nome de “Dr. Parafuso”.

José de Abreu cultivou-se, estudou em casa, era um homem perspicaz e muito bem informado. Não falava francês nem inglês corretamente, mas dominava suficientemente essas línguas. Escrevia e falava muitíssimo bem e construía os seus próprios discursos.

Em Amarante, havia uma fação que lhe era hostil. Era constituída pelos velhos ricos, que não lhe perdoavam a sua ascensão pessoal e nos negócios. Ele veio lá do fundo e fez o que é conhecido.

Chegou a empregar mais de 2 300 trabalhadores, a quem pagava todos os meses. Quando a família Abreu começou, toda, a querer mandar na empresa, as coisas complicaram-se. Eram muitos irmãos e muitos sobrinhos, com vida fácil, sempre a quererem mais e mais.

O senhor Orlando Abreu não gostava do irmão José. Já nasceu rico. Acabou por se matar, estúpida e escusadamente.

O Senhor José Abreu era amigo do pessoal. Ele saía do escritório e dava boleia aos operários, com os fatos de macaco cheios de resina. Não tinha quaisquer preconceitos. 

Havia quem não gostasse de José de Abreu, mas por ele ser um homem que veio do nada e singrou. Depois veio a política e ajudou. Mas ele era tão salazarista como qualquer outro, queria lá saber da política!

Eu nunca fui salazarista e o senhor José Abreu sabia disso. Mas nunca me discriminou. 

As revistas que escrevi na Tabopan, tanto tinham quadros com crítica social, como política. Num desses quadros, a propósito das conversas em família de Marcelo Caetano na televisão, escrevi: As conversas em família / não trazem nada de novo / De paleio estamos cheios / grande pateta é o povo.

O senhor José de Abreu assistiu, riu-se, e não me censurou. Não disse nada.

Nota: esta peça, aqui publicada na íntegra, integrou a edição em papel de AMARANTE MAGAZINE número 38 (Inverno de 2024).

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