João de Vasconcellos: um homem à frente do seu tempo

João de Vasconcelos

“Doía-me a alma, ao contemplar a casa abandonada. As ervas cresciam nas escadas e nos pátios; e aquele silêncio escuro do Marão apegara-se-lhe às paredes e às árvores dos arredores, onde os pássaros se escondiam, emudecidos, e tinham nas asas não sei que modo de voar. Abro a porta; abro-a, com um lúgrebe ruído, e entro, como se fora a sombra de mim mesmo. No corredor e nas salas, paira um crepúsculo frio, uma luz morta… os meus passos ecoam estranhamente, parecendo-me outra pessoa. Tudo é vivo, nesta casa abandonada…” (Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias).

Deveria ser um cenário muito próximo deste que o João e a Maria Amélia encontraram quando, depois de casarem, vieram viver para Pascoaes. Ele vinha do Porto, frequentou o Instituto Industrial, já tinha participado em torneios de luta livre no Parque das Camélias, tinha andado pelo circo Cardinalli a fazer combates de boxe, pelo Sport Club do Porto a fazer ginástica de alta competição. A Maria Amélia vinha de Lisboa.

Era um homem seco de figura, de palavras e de grandes gestos. De trajectos curtos e precisos – ficou-lhe da ginástica o acto repetitivo – viajava entre Pascoaes e o largo de S. Goncalo, nunca se sabendo se quando sentado no Café Bar o pensamento estava com o tio Joaquim ou se quando na sua salinha de Pascoaes com o SG gigante na mão o seu olhar vagueava pelo design dos automóveis que passavam pelo largo de S. Goncalo.

“Sempre foi um homem desconcertante”, diz a tia Maria Amélia

Guiava o Ferrari com a mesma ternura com que guiava o desusado Peugeot 403. A única diferença eram as luvas “à Fangio” com que guiava o Ferrari. Tudo o que fazia era com mestria e com o prazer de ser bem feito.

Silencioso, de sorriso aberto e perna meia cruzada, sentado em S. Gonçalo, naquela Amarante morna dos anos 60, como se um destino qualquer se viesse sentar na mesa do lado, olhava o futuro vagamente, como se o futuro fosse o fumo do seu cigarro.

Olhávamos o João e não sabíamos onde acabava a elegância e começava o descuido, ambos cultivados com a mesma naturalidade. Levava a sério a frase do tio Joaquim no “Pobre Tolo”: “Ser uma coisa evidente é ficar reduzido a quase nada.”

Os dias em Pascoes eram curtos, mas as noites longas. Os dias só eram dias quando alguma transmissão da TV mostrava uma corrida de Fórmula 1 e aí vibrava com a Ferrari e Nicky Lauda ou um campeonato mundial de ginástica ou olimpíadas e nessa altura montava a máquina fotográfica num tripé junto à TV para tirar fotos ao Andrianov, nas argolas.

UM HOMEM À FRENTE DO SEU TEMPO. As fotos eram por si reveladas, as posições tiradas para um caderno de notas e seguiam-se viagens até ao antigo alambique, onde numas argolas treinava os filhos até à exaustão, como se eles fossem capazes de ser Andreopovs amarantinos. O mundo dos filhos já era outro.

As noites eram mais e mais delicadas. Os temas eram políticos (Sá carneirista convicto) ou culturais. A sua predileção por temas esotéricos era enorme. A ficção científica e os avanços nas ciências do conhecimento davam noites de conversa enormes.

Tinha lido os livros do Isac Asimov e do Eric van Daniken e falava com prazer de todo um futuro de alta tecnologia que não chegou a conhecer. Da teoria da catástrofe, ao efeito borboleta de Lorenz , da inteligência artificial aos algoritmos, tudo era tema de conversa. Sentado em Pascoes, à sombra do Marão, tinha um verdadeiro conhecimento cosmopolita das coisas.

Os seus trabalhos experimentais em fotografia, em esmaltes, no bilhar (Pappas), na pintura, foram um exemplo de um homem à frente do seu tempo. Entendo que o João pintava para ele e para os amigos, como se estivesse num laboratório e pesquisasse para, depois, nos transmitir as suas conclusões.

“O homem foge da sua sombra anterior, para a sua luz futura”, escrevia Pascoaes. Nada que o João não seguisse á risca, ele que poucas vezes visitava os locais do poeta, com medo talvez das incertezas do futuro, feitas certezas, pelo tio Joaquim.

Era um menino vadio que num relâmpago se fazia gente. Numa carta que me escreveu para África, à terceira linha começava a encurvar e, na sexta, já tinha a carta de lado para a conseguir ler e a carta acabava, depois de muitas voltas, de pernas para o ar.

Aquelas voltas ficaram-me não cabeça. Anos depois falei-lhe sobre a carta e a explicação foi imediata: o mundo gira e eu não quero ficar parado.

Era um homem à frente do seu tempo. Já o tinha sido o tio Joaquim. Espreitava as novidades da ciência, mas não as usava. A chegada do homem à lua, levou-lhe um dos maiores amigos, talvez o que primeiro adivinhasse o seu desígnio de pintor – Manuel D Assumpção. E aqui começa a cosmicidade livre da sua pintura. Já vive um futuro com a necessidade de pintar.

Não consigo adivinhar como toda esta tecnologia que nos envolve seria vista e conversada pelo João. Ir-se-ia render aos telemóveis e aos iPads? Duvido! Mas tenho a certeza de que não trocava o barulho de um motor V12, pelo silêncio de um carro eléctrico por mais cavalos que tivesse.

Ortega e Gasset escreveu que “o homem é ele é as suas circunstâncias”. O João brincava com as suas circunstâncias. O viver na Casa de Pascoaes, o ser selecionado para as olimpíadas de Helsínquia, o gosto apurado pelos Ferraris, a fotografia, o bilhar, a pintura, os amigos.

Todas estas coisas foram as circunstâncias que moldaram o J V. Depois, outras circunstâncias, as genéticas: a avó Carlota que reconstruiu a casa incendiada pelos franceses, o avô, Par do Reino, presidente da Câmara Municipal de Amarante que não aceitou o título de Conde de Pascoaes por nobreza de carácter, o ser sobrinho de Teixeira de Pascoaes, o Pai que foi um dos maiores caçadores de elefantes do seu tempo, a Mãe que criou os filhos, desesperadamente só, o tio Álvaro um gentleman farmer que corroeu muitos corações na LISBOA dos anos 20 e não só. As tias, Miquelina, a pintora e Glória, a mais mundana.

Homem moldado neste conglomerado de circunstâncias, marcado pela sombra granítica do Marão, viveu sempre com a elegância de quem tem um destino a cumprir – Encontrar a fórmula que torne o visível invisível e nos aponte o futuro como um destino.

As aguarelas empurram-nos para uma invisibilidade quebrada pelos estilhaços duros e luminosos dos óleos. Os últimos anos foram os de uma morte anunciada. Mesmo assim, sempre os mesmos sonhos de uma vida inteira. De quando em quando refastelava-se na sua cadeira ao lado da janela, atrás de qualquer assunto que lhe roubasse uma existência com imensa dor.

Foi um dos últimos de uma geração que dificilmente se replicará. Uma geração que marca a passagem de um Portugal que viveu uma idade de ouro cultural para um Portugal que quer viver moderno e globalizado.

Ao longo dos anos, se muitos vieram pelo Teixeira de Pascoaes, quase todos ficaram presos pela amabilidade do João, deixaram cá a sua marca e foram mostrando Amarante ao mundo. A Natália Correia, o Cesariny, o Cruzeiro Seixas, o D’ Assumpção, a Sophia, o David Mourão Ferreira, o João Pinto de Figueiredo a Germana Tânger, o Artur Bual, o Justino Alves, o Pinheiro Guimarães, o Hermínio Monteiro e tantos outros.

E os que voltavam cá para o abraço: O Nicha Cabral, o Ângelo César, o Câmara Leme, o Castelo Melhor, o Angelo Costa (Ângelo dos Ferraris). Já por lá tinham passado, na geração anterior, Unamuno, Raul Brandão, Serpa, Régio, A. Duarte, Andrade, Sophia, etc.

UM PASCOAES SEMPRE FOI TUDO. Nos seus últimos anos, a doença com a sua diminuição de forma física foram-no isolando de todos estes personagens tão interferentes na sua vida. Caminhava pelo corredor, em direcção ao atelier, e à pintura, como se olhares e silêncios angustiantes se cruzassem com ele. Já era o seu fantasma.

Mesmo assim o menino continuava como no primeiro dia em que lá tinha chegado para viver. Um Alpine azul e uma Honda amarela foram os seus últimos sonhos de criança.

Fernando Pessoa sobre os portugueses dizia: “O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo”.

Permitam-me que eu cite Fernando Pessoa, mas aplicado aos Pascoaes: Os Pascoaes são essencialmente cosmopolitas. Nunca um verdadeiro Pascoaes foi amarantino: foi sempre tudo.

E os amarantinos podem sonhar com o Amadeo, com o António Carneiro com a Agustina com o Alexandre Pinheiro Torres, com o Acácio Lino, podem sonhar com tantos outros que deram o nome a ruas e praças, aqui e noutras cidades. De todos estes, em Amarante só ficou o nome e pouco mais. Com os Pascoaes não foi assim. Ainda cá estão. Está cá tudo.

Não quero aqui deixar de referir a comenda com que o Dr. Jorge Sampaio, Presidente da República, agraciou a Senhora Dona Maria Amélia, por durante mais de 50 anos ter guardado um dos maiores espólios da literatura portuguesa, o maior e o mais importante da primeira metade do século XX.

Os amarantinos ficam a dever muito a estes Pascoaes.

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