Na Formação do Amarante Futebol Clube (AFC) aprende-se a jogar a partir dos quatro anos, nos Gonçalinhos, idade em que se começa, também, a absorver valores como a entreajuda, a partilha, a cooperação, o respeito pelo outro ou o fairplay. A competição chega aos seis anos, em equipas de sub-7, com os escalões a prolongarem-se até aos sub-19. Ao todo são, atualmente, 400 os meninos e meninas que o clube está ajudar a crescer.
As recentes conquistas da equipa sénior do Amarante Futebol Clube (AFC) – em que pontifica a subida, a época passada, à Liga 3 – vieram reforçar a notoriedade daquela instituição, fundada em 1923, direcionando sobre si muitos olhares, mesmo daqueles que não seguem, habitualmente, a carreira das equipas de futebol.
E de tal modo foi a adesão dos sócios e adeptos do AFC àquela subida que, logo em junho, ainda antes do muito celebrado jogo entre o Amarante FC e o Vitória de Setúbal (3-0), que definiria o vencedor absoluto do Campeonato de Portugal, a loja do clube no Estádio Municipal esgotaria o seu stock de cachecóis, camisolas e merchandising.
As transmissões televisivas que têm envolvido a equipa, com destaque para a do referido jogo com o Vitória de Setúbal a partir do Estádio Nacional; da recente partida com o Sporting para a Taça de Portugal ou da mediatização que o Canal 11 vem proporcionando com o acompanhamento dos jogos da Liga 3, têm mantido o Amarante FC na agenda mediática desportiva, dando-lhe visibilidade e reforçando sobre si o interesse e a atenção.
Com toda a justiça, diga-se, até pela carreira que a equipa sénior está a fazer na Liga 3. Porém, o Amarante Futebol Clube vai muito para além da sua equipa sénior. Nos “bastidores”, discretamente e sem a visibilidade merecida, existe um outro mundo, o da Formação, onde, no total, mais de 400 jovens (meninos e meninas) aprendem o futebol. Os mais novos têm quatro anos e os mais velhos integram o escalão dos sub-19. Em comum, têm a paixão pelo futebol, projetam-se nos seus ídolos, que imitam, e cujo número gostariam de ter na sua camisola. Nem todos podem ser 7, mas daqui já sairam grandes jogadores, como Tarantini, Delfim, Nuno Gomes ou Ricardo Carvalho.
AFC é Entidade Formadora Certificada
Ricardo Pinto, 37 anos, Licenciado em Educação Física, é treinador de Formação há 12, oito dos quais ligado ao FC do Porto. Em 2020, integrou o setor de formação do Amarante Futebol Clube como treinador da equipa dos sub-17, passando, mais tarde, a treinador dos sub-19. Posteriormente, foi convidado para Coordenador Técnico da Formação.
Foi nesta qualidade que conversou com AMARANTE MAGAZINE, sublinhando, de imediato, o facto de o Amarante FC ser uma Entidade Formadora certificada pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) com o nível de quatro estrelas, em cinco possíveis.
A atribuição do número de estrelas tem a ver com o cumprimento de um conjunto de parâmetros, entre os quais a adequação das infraestruturas desportivas; a capacitação dos recursos humanos, com os treinadores da formação a terem de possuir, no mínimo, o curso de nível 1 da UEFA; a existência de uma equipa multidisciplinar de saúde e uma correta definição de valores e objetivos, designadamente, para além da existência de um explicito Código de Conduta. A certificação, renovada anualmente, é obrigatória para clubes que tenham equipas a disputar campeonatos nacionais. No caso do AFC, são duas: a equipa sénior e a masculina de sub-15.
O Manual de Acolhimento e Boas Práticas do clube amarantino – uma espécie de “bíblia” para os comportamentos e de grande relevância para os processos de certificação – é, de acordo com Ricardo Pinto, levado muito a sério no AFC. A formação, defende, tem que assentar numa forte componente pedagógica, que valorize a entreajuda, a partilha, o respeito pelo outro, a união e o trabalho em grupo.
E, sublinha aquele responsável, o futebol de formação deve ser olhado como um instrumento para ajudar a crescer meninos e meninas, moralmente bem formados/as e com sucesso nos seus percursos escolares.
“Temos muito em conta o rendimento escolar dos nossos atletas e os treinadores são instruídos para, em cada período letivo, colocarem as suas notas numa plataforma do clube, de forma a que possamos seguir as suas prestações na escola e detetar algum incidente ou percalço. Sabendo desse nosso cuidado, os pais procuram-nos, muitas vezes, para ajudarmos a corrigir alguma situação menos boa, facto que nós valorizamos muito”, refere Ricardo Pinto.
E explica que perante algum comportamento na escola que mereça atenção, uma conduta desviante, de desinteresse ou de desleixo, o clube adota estratégias em conformidade. E, assim, se o menino/a é capitão/ã de equipa, é-lhe “retirada” a braçadeira até que a volte a merecer, podendo mesmo não ser convocado para um ou mais jogos, ver o seu caso discutido no balneário, entre pares, “e o/a menino/a vai recuperar porque o grupo precisa dele/a”, garante.
“Aos pais que nos procuram costumo dizer-lhes que se os filhos se portam mal, se tiram más notas, a solução não pode ser dizer-lhes ‘acabou o futebol, não voltas aos treinos’. Pelo contrário, o/a menino/a deve continuar a treinar. Jogar futebol é, supostamente, aquilo que mais gosta de fazer. Logo, nós temos de pegar no futebol e usá-lo estrategicamente como razão para ele/a corrigir algo ou mudar o seu comportamento”, considera o Coordenador Técnico da Formação do AFC.
Quando são os adultos a portarem-se mal…
Formar atletas valorizando o prazer do jogo pelo jogo, incutindo-lhe valores como o respeito pelo adversário (a competição começa logo no escalão dos sub-7) e o fairplay, necessita muito do empenho dos pais e dos espectadores em geral, que, na sua maioria, levam os jogos dos escalões de formação muito a sério, com claques, “ordens” para dentro do campo, assobios, “mimos” aos árbitros ou exacerbando a rivalidade entre adversários.
Ricardo Pinto tem consciência desta situação e refere que os responsáveis pelo AFC têm reuniões frequentes, quer com a Federação, quer com a AF Porto, no sentido de serem criadas estratégias que promovam mais os lados pedagógico e lúdico da formação. “Falo de ações de sensibilização, de reuniões com encarregados de educação, mas, infelizmente, esse trabalho não está a ter grandes resultados. A forma como muitos pais vêem a formação está a atingir níveis de loucura e obsessão difíceis de controlar e que põem uma pressão muito grande em cima das crianças”, desabafa.
E acrescenta: “O facto de haver uma tabela classificativa em escalões muito jovens não ajuda à existência de um clima de tranquilidade ou da prática de desporto pelo desporto. Nós achamos que o perder e o ganhar têm que existir, até porque os meninos devem saber lidar com a frustração, mas corremos o risco de não estarmos a promover convenientemente a competição saudável, a entreajuda, o convívio, o conhecimento das regras. Há, mesmo, o perigo de estarmos, desde cedo, a fomentar, digamos, o ódio pelo outro, por quem ganha. O público dos jogos entra em quezílias mais cedo, com atitudes e acontecimentos desagradáveis, muito feios, por vezes. De resto, basta consultar o mapa semanal de castigos da AF do Porto, onde aparecem, frequentemente, multas aos clubes por mau comportamento do público”.
O futebol (também) é para meninas
O Amarante Futebol Clube tem, atualmente, 20 equipas de futebol de formação inscritas na Associação de Futebol do Porto, que disputam os respetivos campeonatos distritais, em escalões que vão dos sub-7 (os Gonçalinhos entre os quatro e os seis anos não competem) aos sub-19. A excessão é a equipa de sub-15, que disputa o campeonato nacional.
Também a disputar o campeonato nacional esteve a equipa de sub-19, que, entretanto, regressou ao campeonato distrital. Ricardo Pinto explica a descida, entre outras razões, com o facto de Amarante não ser uma cidade universitária, o que obriga os jovens de 18 anos, quando acabam o ensino secundário, a saírem de Amarante e ficarem, assim, impedidos de continuarem a treinar no seu clube.
A novidade, esta época, é a existência de duas equipas femininas, uma de sub-11 e outra de sub-15, que estão a disputar os correspondentes campeonatos da Associação de Futebol do Porto.
“A constituição de equipas de futebol feminino não foi, no caso do AFC, um ‘entrar na onda’, mas sim o materializar de um propósito que constava das intenções da atual direção desde a sua tomada de posse”, afirma Ricardo Pinto.
“Ao contrário de opiniões ou preconceitos do passado, o futebol é mesmo para meninas. Não há quaisquer condicionantes, anatómicas ou outras, que limitem a existência de equipa femininas, até porque, atualmente, o futebol é mais pensado, mais técnico e mais tático, em detrimento da força, embora continue a ser um desporto de contacto”, diz, referindo que a criação das equipas femininas se insere, também, na promoção da igualdade de género, com reflexos na “conquista” da bandeira ética do clube, criada no âmbito de um projeto que envolve a Federação e o Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ).
Para Ricardo Pinto, o facto de, atualmente, as meninas começarem a treinar e a jogar mais cedo, leva a que haja, também, cada vez mais e melhores atletas, mudando o olhar masculino sobre as jogadoras, que são olhadas com maior respeito.
Para o recrutamento de jovens para as equipas femininas, o AFC usou as redes sociais online e promoveu “open days” nos meses de julho e agosto. Ao convite do clube acederam 40 meninas, mas, sendo as idades bastante díspares, apenas foi possível construir dois escalões: de sub-11 e sub-15.
A equipa de sub-11 é treinada por Pedro Monteiro e tem como diretora Inês Cunha. A de sub-15 é treinada por Pedro Ribeiro, sendo sua diretora Catarina Leite. Ambas as diretoras fazem questão de acompanhar as atletas, quer em treinos quer em jogos, cuidando de todos os pormenores que têm a ver com o seu bem-estar, enquanto meninas ou atletas.
Os resultados dos jogos são, para já, matéria de pouca preocupação, até porque, em termos de futebol jogado, há muita aprendizagem pela frente, como reconhecem, em uníssono, as jogadoras. Todas, porém, valorizam o prazer de jogar e de crescerem enquanto meninas e adolescentes, fazendo desporto.
Falta um campo para futebol de 11
Pensando-se no número de atletas que integram os escalões de formação do AFC – mais de 400 – e de equipas que jogam e treinam em cada semana – 20, no total – imaginar-se-á dispôr o clube de grandes infraestruturas desportivas, mas não é assim.
De facto, o AFC dispõe, somente, de dois campos de jogos (com relvado sintético) destinados ao setor da formação, sendo que nenhum deles tem, por exemplo, as medidas exigidas para a disputa de partidas de futebol de 11 inseridas em campeonatos nacionais.
Por isso é que a equipa masculina de sub-15, que está a disputar o campeonato nacional da categoria, quase não tem possibilidades de jogar em casa, porque o campo que lhe está destinado não tem as medidas regulamentares. A solução poderia passar pela utilização do relvado (natural) do estádio, mas isso poucas vezes é possível, pelo facto de aí jogar a equipa sénior, a disputar a Liga 3, e serem grandes as exigências sobre o bom estado da relva.
Ricardo Pinto salienta a premência de o clube passar a dispor de um terceiro campo com as medidas regulamentares para a disputa de jogos inseridos em campeonatos nacionais e exemplifica: “Durante vários anos tivemos a nossa equipa de sub-19 a disputar o campeonato nacional e tínhamos de recorrer ao campo do Salvadorense. Agora, é a equipa de sub-15 a disputar o campeonato nacional e, sempre que não pudermos utilizar o estádio, teremos de jogar fora da cidade, sabe-se lá se não mesmo noutro concelho. O que, acrescenta, é algo desmotivador para os atletas e para os pais, é mais dispendioso e acabamos por não ter referências. As equipas deveriam poder treinar nos campos onde jogam pelo menos duas vezes por semana”.
Clubes grandes vêm “pescar” a Amarante
Não é de agora. Como já atrás se escreveu, o Amarante Futebol Clube tem sido, ao longo dos tempos, uma “cantera” de onde já sairam grandes jogadores. Detentor dessa “marca”, são de muitos clubes os “olheiros” que espiam os jogos dos escalões de formação, identificando meninos/as com qualidades e potencial para virem a tornar-se bons jogadores, convidando-os/as, depois, a participarem em jogos de captação.
“É uma das guerras do futebol de formação de hoje em dia. O “scouting” está a destruir a essência do futebol de formação! Há abordagens feitas a meninos de 6, 7 ou 8 anos que, em alguns casos, em minha opinião, se assemelham a crimes”, refere Ricardo Pinto.
A Amarante vêm recrutar clubes como o Penafiel, Paços de Ferreira, Rio Ave e Guimarães, mas também o FC Porto ou o Benfica. “Recebemos frequentemente emails de outros clubes a ‘convidar’ atletas nossos para jogos de observação. Contactam o Amarante FC apenas por uma questão ética, digamos, embora nós saibamos que, antes, já abordaram os pais”!
E a verdade é que muitos pais apostam tudo no sonho de terem um Cristinano Ronaldo em casa. E basta um clube grande mostrar algum interesse no(s), seu(s) filho(s) para ficarem recetivos a uma mudança, menosprezando a exposição dos meninos a situações desajustadas, como viagens grandes ou horários desadequados para a idade, com reflexos no tempo de descanso e, muitas vezes, no seu rendimento escolar. E, não raro, para irem jogar contra o AFC, que tem equipas nos mesmos escalões dos clubes contratantes!
Da formação dos clubes tenderia a pensar-se que poderia resultar a base da equipa sénior, o que, a ser assim, estaria encontrado o retorno do investimento feito na formação. Mas raramente isso acontece. “Às vezes este é, mesmo, um trabalho inglório”, confessa Ricardo Pinto.
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