A ponte medieval de Amarante revisitada

Essa que vês, amigo, parte em terra,
Parte no rio, e parte inda pendente, 
Foi ponte, que cingiu larga corrente,
E agora nas areias se soterra.


Excerto do poema à ruína da Ponte de Amarante, por Pe. Paulino Cabral (1719 – 1789)

A posição geográfica do local onde viria a surgir a actual cidade de Amarante tornou-se, desde a Época Romana, ponto estratégico no cruzamento de duas importantes vias: uma proveniente das Beiras, em direcção ao Minho; e outra do Douro Litoral, em direcção a Trás-os-Montes. Esta localização viria a ganhar importância a partir do Séc. XIII, com a construção ou a reedificação da Ponte de Amarante.  

Segundo a Memória Local, a construção da ponte deveu-se à acção de S. Gonçalo, chegado a Amarante por volta de 1240-1250. Contudo, há indícios documentais que mencionam a existência de uma ponte sobre o Tâmega antes da chegada do santo, provavelmente datada da Época Romana. 

Um desses primeiros documentos é a Delimitação da Diocese de Braga, atribuída ao ano 572 e decidida no II Concilio de Braga, na qual consta a seguinte descrição: «per illa aqua de estola usque in Durio, usque in Duriu, usque in Foze de Corrago et inde ad Montem Maroni et inde ad Castro quod dicitur Villa Plana et inde ad illa ponte de Tamice et inde per illam aquam usque ad fluvio de Uteros», que se traduz do seguinte modo: os limites da Diocese de Braga iam pelo Rio Douro até à Foz do Rio Corgo, daí subiam à Serra do Marão e do Marão até ao Castro de Vila Chã e de lá até à Ponte sobre o Tâmega e pelo rio, até ao Odres. 

Pelo exposto, depreende-se que no Séc. VI, existiria uma ponte sobre o Rio Tâmega, localizada entre Vila Chã (Castro de Vila Plana) e a Foz do Rio Odres, em Constance – Marco de Canaveses, ponte essa que poderá corresponder à localização da actual Ponte de São Gonçalo. No entanto, importa referir que este documento, publicado no Liber Fidei, poderá ser apócrifo, se bem que esta descrição aparece noutros documentos como, por exemplo, na acta do Concilio de Lugo, realizado no reinado de Miro (569 – 582).    

Séculos mais tarde, surge uma nova menção a uma ponte sobre o Tâmega, datada de 1019, mais concretamente uma doação de D. Gomes de Sousa, Senhor de Felgueiras, feita ao Mosteiro do Pombeiro[1], citado nas «Cartas Histórico-Criticas Escritas a Diversas Pessoas por Fr. Marcelliano da Ascenção, Monge de S. Bento na Congregação de Portugal», escritas no Séc. XVIII. 

Também numa Bula do Papa Pascoal II, datada de 1114, constata-se uma nova referência a uma ponte que se transcreve: «usque in fauce de Corago, et inde ad Montem Maraoni et inde ad Castrum quod dicitur Villa Plana et inde ad illum pontem de Tamice, et inde per illam aquam usque ad illum fluuium de Utribus». No entanto, deve-se ter presente que, nesta bula, o papa confirma os limites da Arquidiocese de Braga[2], demarcados no tempo de Miro, Rei dos Suevos (Séc. VI), ou seja, neste documento papal encontra-se uma transcrição de um documento mais antigo, provavelmente resultante do II Concilio de Braga. 

“(…) A crer numa versão da Memória Local, S. Gonçalo não a reedificaria, mas poderia ter tratado do seu restauro ou reconstrução. Também se levanta a hipótese de a reconstrução ter acontecido em data anterior a 1220, ou a chegada do santo ter antecedido algumas décadas. Segundo outra versão, S. Gonçalo, quando se instala em Amarante, constrói uma ponte em pedra para substituir uma já existente, mas em madeira. Ou seja, esta versão da lenda de S. Gonçalo, está em concordância com as inquirições de 1220, onde apenas é citada a existência de uma ponte, não indicando se está em bom estado de conservação e se é em alvenaria”. 

Porém, noutro documento relativo ao Concilio de Lugo, datado de 572, surge a seguinte descrição dos limites da Diocese de Braga: «in fauce de corrago. inde ad montem maraonis. ad castrum quod dicitur Villa Plana usque ad antiquum pontem Fluminis Tamice. Et per ipsum Flumen usque ad Fluuium utilem qui modo de Utribus appellatur». Importa reter nesta descrição, semelhante às acima apresentadas, o seguinte: «antiquum pontem Fluminis Tamice», pelo que se pode depreender que a ponte, em meados do Séc. VI, já não existia ou se encontrava em avançado estado de ruina. Esta descrição apresenta uma fórmula semelhante à versão publicada na obra de 1796, Espana Sagrada, quando transcreve a bula papal: «ad antiquum pontem Fluminis Tamice».    

Por sua vez, nas Inquirições de 1220 de D. Afonso II (rei de Portugal) voltam a surgir referências à Ponte de Amarante: «ergo quod debent homines de ista villa facere ramatam regi ad aliam villam de ultra ponte cum hominibus ipsius ville». Esta citação é contraditória, de certo modo, com a tradição corrente em Amarante de que que a construção da ponte se deu por acção de S. Gonçalo por volta de 1250.

Mediante este facto, Albano Sardoeira, e mais tarde António de Sousa Machado, colocaram o benefício de dúvida do vocábulo latino ultra (do outro lado) e propõem a leitura altera (antiga). No entanto, ao verificarem-se as transcrições das inquirições de 1220, levadas a cabo no reinado de D. Manuel I, certifica-se que o termo ultra não suscita qualquer problemática com a sua leitura e interpretação, podendo-se concluir que, o facto de existir uma ponte, nos idos de 1220, não significa que esta se encontrasse em bom estado de conservação e poderia estar arruinada, constituindo perigo a todo aquele que a atravessasse. 

A crer numa versão da Memória Local, S. Gonçalo não a reedificaria, mas poderia ter tratado do seu restauro ou reconstrução. Também se levanta a hipótese de a reconstrução ter acontecido em data anterior a 1220, ou a chegada do santo ter antecedido algumas décadas. Segundo outra versão, S. Gonçalo, quando se instala em Amarante, constrói uma ponte em pedra para substituir uma já existente, mas em madeira. Ou seja, esta versão da lenda de S. Gonçalo, está em concordância com as inquirições de 1220, onde apenas é citada a existência de uma ponte, não indicando se está em bom estado de conservação e se é em alvenaria. 

Frei Marcelino da Ascensão afirma que na antiga ponte existia um escudo com as armas reais, contendo apenas as quinas com os respectivos besantes, não constando os castelos[3]. A ser assim, seria de remeter a sua construção, para uma data anterior a 1258, ano em que D. Afonso III introduz os castelos nas Armas Reais de Portugal. Sabe-se também que junto a este brasão se podia ver uma inscrição com uma data que fora picada a mando de Frei João de Quadros, em tempo incerto posterior a 1540. 

Sabe-se também que a ponte era constituída por três arcos de volta perfeita, sob os quais assentava o tabuleiro com 63 m, guarnecido por ameias nas guardas. Sabe-se ainda que os pilares eram reforçados por talha-mares. Na margem esquerda, erguia-se uma torre ameada de planta quadrangular adossada ao paço dos Senhores de Gouveia de Riba-Tâmega que servia de portagem. No piso inferior da torre, podiam ver-se quatro vãos para portas, uma para a Rua do Covelo a Norte; outra para a Rua de Canaveses a Sul; uma com comunicação directa para o Paço dos Senhores de Gouveia a Este; e outra para a margem direita do rio a Oeste. Não se sabe se a torre era guarnecida de seteiras.

Ao centro do tabuleiro, mais próximo às guardas de jusante, encontrava-se um cruzeiro bifaciado, contendo de um lado a imagem de Cristo Crucificado (voltado para a margem esquerda) e a de Nossa Senhora da Piedade (voltada para a margem direita), localmente conhecida por Nossa Senhora da Ponte. Sob esta escultura, existia um brasão com as armas reais, contendo apenas os escudetes guarnecidos de besantes. Neste cruzeiro existia ainda uma lamparina. No pilar do arco mais próximo à margem direita do rio, existia a seguinte inscrição: «ESTES PILARES FES/P.O F.CO ANO […]92», e no da margem esquerda, mas com maior espaçamento entre letras a seguinte: «ESTE FES P(edr)O F(rancis)CO». Provavelmente na base do cruzeiro a seguinte inscrição: «PONS ISTE CHRÕ SERVAT/ MARIA MATRI VIRG. DEI/ IPSIS FAVENTIBUS AB SO/LUTUS XXV. OCTOB. AEA/ MCCXLIX/ POST MENS XXX ASUA IN/CHOATIONE/ CMRE DEVS SERVA PONTEMTUM IN HONOREM ET CO/MMODUM SERVORUM TUO/RUM ADEFICATUM AMEN DEO/ GRS». 

Pela descrição realizada, em 1727, à ponte por Francisco Xavier Chraesbeeck, constata-se que houve duas fases de obra, uma mais antiga que correspondia até cerca de meia altura dos pilares e às aduelas do arco principal, constituídos por juntas mais espaçadas e outra, mais recente, constituída por juntas mais aproximadas, correspondente, de grosso modo, às guardas da ponte, ameias e torre portageira. Este acrescento à ponte, terá acontecido entre os Sécs. XIV e XV. Terá sido também neste período que se colocou o cruzeiro que tinha em permanência, durante a noite, uma lâmpada acesa[4]

“(…) Após a reconstrução da ponte, a malha urbana de Amarante, que até então se ia concentrado nas vertentes mais aplanadas de São Veríssimo, Santa Luzia, Devesa e Portela (Misericórdia, começa a deslocar-se em direcção à ponte, dando origem à actual centralidade de Amarante”. 

No entanto, a crer na transcrição do padrão mencionado pelas memórias paroquiais da Villa d’Amarante, realizadas a 22 de Maio de 1758 e que já não existia, constata-se a seguinte data: Era de 1249[5] que corresponde ao ano da Era de Cristo de 1211. Mais uma vez e segundo esta data, a intervenção realizada por S. Gonçalo na ponte perde fundamento, a crer na cronologia apontada pela tradição (1240 – 1250). Porém, pelas inquirições de 1348 realizadas à Ordem do Hospital, um dos inquiridos, João Rodrigues, afirma que duas Senhoras, D. Alda e Elvira Vasques de Sousa, filhas de D. Vasco Fernandes de Soverosa e de D. Teresa Gonçalves de Sousa, possuíam na Vila de Amarante 2 casais quando a ponte se começava a fazer. Tendo D. Alda falecido em Santo Tirso no ano de 1273 e D. Elvira em data incerta anterior a 1258, pode-se concluir que a ponte terá sido reedificada no decurso da primeira metade do Séc. XIII. Terá havido algum erro na transcrição da referida inscrição? Terá o autor da transcrição confundido a era de César com a era de Cristo? Somente a realização de mais e aprofundadas perícias poderá responder a estas questões.        

Por último, há ainda uma questão pertinente que deve ser abordada: a localização da ponte. 

Atual ponte de S. Gonçalo (Foto AM)

O local onde a ponte de Amarante viria a ser edificada caracteriza-se por ser um espaço na vertente inferior da Colina de Entremuros, de declive bastante acentuado constituído por um maciço rochoso. De igual modo, as margens do rio são altas, apertadas e delimitadas por enormes fraguedos que provocam o estrangulamento do leito, contribuindo para o aumento da turbulência das águas, tornando a travessia, ainda mais complicada. No entanto, do ponto de vista da engenharia, margens estreitas, rochosas e de maior elevação topográfica são as ideais para a edificação de uma ponte, fazendo com que esta seja menos dispendiosa, mais curta, sólida e de maior facilidade construtiva. 

Após a reconstrução da ponte, a malha urbana de Amarante, que até então se ia concentrado nas vertentes mais aplanadas de São Veríssimo, Santa Luzia, Devesa e Portela (Misericórdia) começa a deslocar-se em direcção à ponte dando origem à actual centralidade de Amarante. 

A velha ponte medieval de Amarante, segundo os relatos da época, em meados do Séc. XVIII encontrava-se bastante degradada, com algumas lacunas a nível de paramentos e com um dos talha-mares em falta, ameaçando ruir, facto que aconteceu a 10 de Fevereiro de 1763.

Depois de alguns anos sem ponte e resolvido o litigio com os Condes do Redondo por causa dos direitos da portagem, viria a ser construída a actual Ponte de Amarante, aberta ao trânsito em 1788. Da antiga ponte medieval apenas restam os seus alicerces, alguma silharia do arranque do arco da margem direita, a imagem de Nossa Senhora da Ponte/ Cristo Crucificado e uma cruz de sagração gravada num dos penedos da margem direita sobre o qual assentava um dos pilares. 

Referências Bibliográficas:  

ALARCÃO, Jorge de; Os Limites das Dioceses Suevas de Bracara e Portucale in Portugalia, Nova Série, vol. 36; Porto; 2015.
COSTA, Jorge da; Acerca da Inserção Urbana do Convento de São Gonçalo de Amarante, in Monumentos; Lisboa; IPPAR; Setembro de 1995. 
CRAESBEECK, Francisco Xavier da Serra; Memórias Ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho; no ano de 1726; vol. I e II; Ponte de Lima; Ed. Carvalhos de Basto (fac-simile); 1992.
FLÓREZ, Henrique; España Sagrada, Vol. XXI; Madrid; Antonio Marin; 1762.
MACEDO, Luís Van Zeller de; Pequena História de Amarante; Amarante; edição do Autor; 1993. 
MAGALHÃES, Arlindo de; São Gonçalo de Amarante, Um Vulto e um Culto; Vila Nova de Gaia; Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia; 1996. 
MAGALHÃES, Pe. Francisco de Azevedo Coelho de; História de Amarante; Amarante; Câmara Municipal de Amarante (Ed. Fac-similiada); 2008. 
PATRÍCIO, António; Lendas de S. Gonçalo e de Amarante; Amarante; Paróquia de São Gonçalo; 2009 (1ª edição); 2011 (2ª edição). 
SARDOEIRA, Albano; A Antiga Ponte Fortificada de Amarante, Referências a outras pontes; Amarante; Grupo dos Amigos da Biblioteca-Museu de Amarante; 1994. SILVA, Isabel (coord.); Dicionário Enciclopédico de Freguesias, vol. I, Porto; 1997.   

[1] – «Pro remedio animae meac, Ego, Dominus Gomesius de Souza domno Monasterio de Polumbario, et viris Sanctis de illo, hereditates, quas emi a Padrono Monasterii de Tholones sitas citra pontem Tamicae de Amaranti.»

[2] – Embora considerada Primaz das Espanhas, desde 569, o estatuto de Arquidiocese seria reconhecido pelo papa Pascoal II em 1103. 

[3] – Este brasão corresponderá ao fuste do cruzeiro sobre o qual assentava a escultura de Nossa Senhora da Ponte, descrito por Francisco Xavier Craesbeeck em 1726.

[4] -«Ao presente está neste cruzeiro huma  alampeda asesa de noute», in Francisco Xavier Chraesbeeck, Memórias Ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho no ano de 1726.  

[5] – Em Portugal até 1422, os anos eram contados a partir da Conquista da Hispânia por César Augusto ocorrida no ano de 38 a. C. A 22 de Agosto, D. João I, à semelhança do que havia sucedido em Castela e Aragão abole a Era de César e introduz a Era de Cristo.

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