Amarante: o mito dos doces conventuais

Foto de Mara Pinto.

“Doces Conventuais? Essa é uma ideia peregrina”. A expressão é do Chef Hélio Loureiro, que, em conversa com AMARANTE MAGAZINE, acrescentou: “Eu chamá-los-ia de tradicionais e não de conventuais. Nasceram no seio das famílias da terra e foram-se apurando. São marcadamente tradicionais e locais. Veja, os ditos doces conventuais de Amarante não têm nada a ver com os também ditos doces conventuais de Alcobaça, por exemplo”.

Hélio Loureiro é um Chef e Gastrónomo que dispensa apresentações. Tem no seu currículo a promoção de festivais gastronómicos em todo o mundo, esteve ligado à abertura, em Portugal, de hotéis como o Meridien, no Porto, ou o Hotel da Quinta do Lago, no Algarve; é figura ativa junto de múltiplas confrarias gastronómicas (sendo fundador da Confraria Gastronómica das Tripas à Moda do Porto); foi Chefe de Cozinha do Futebol Clube do Porto e responsável gastronómico da Seleção Portuguesa de Futebol entre 1996 e 2016 (período que incluiu o Euro 2004. 

Também investigador e escritor é autor de vários livros, entre os quais “À mesa com a nossa Seleção” (Federação Portuguesa de Futebol, 2005 (co-autor); “O cozinheiro de D. João VI (Esfera do Livro, 2018); “À Moda do Porto” (Almedina, 2017) ou “Cozinhar à Portuguesa com o Chef Hélio Loureiro” (Porto Editora, 2021)

Em reconhecimento pelo seu percurso profissional recebeu, entre outras, a distinção de Comendador da Ordem Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, atribuída pelo Chefe da Casa Real Portuguesa, e foi agraciado pelo Presidente da República Jorge Sampaio com o grau de Oficial da Ordem do Mérito. Participa, com regularidade, em programas de televisão.

Hélio Loureiro é monárquico assumido, defendendo que “a monarquia é a Pátria com rosto, a humanização do Estado. Pode-se, por vezes, subornar um Rei, mas os Presidentes da Républica estão sempre à venda, pois precisam de votos”.

As poucas linhas acima não dizem tudo sobre o extenso currículo de Hélio Loureiro, que, para o que aqui nos traz, tem uma particularidade importante: o Chef iniciou a sua vida profissional em Amarante, em 1984, com apenas 20 anos, recém-formado pela Escola de Hotelaria e Turismo do Porto (EHTP).

“Fui avisado da Escola de que haveria uma vaga para cozinheiro num restaurante de Amarante e concorri. Tratava-se do Zé da Calçada, onde fui recebido por D. Amélia, que me achou muito novinho, mas que me contratou. Era segunda-feira, eu queria começar a trabalhar logo no dia seguinte, mas a senhora não me deixou. Respondeu-me com um ditado popular que diz que ‘à terça e sexta-feira, não cases filha nem teças teia’. Comecei na quarta, em plenos preparativos para as Festas de Junho, que teriam lugar no fim de semana”, contou a AMARANTE MAGAZINE (AM).

Hélio Loureiro foi chefe de cozinha do Zé da Calçada durante oito meses, um período que diz ter sido marcante e durante o qual aprendeu muito. 

Em Amarante ainda há pouco tempo, foi, um dia, tomar chá à Confeitaria Lailai, onde conheceu sua dona e a quem perguntou se poderia estagiar com ela, visto ter parte das tardes livre. E foi com D. Lailai que aprendeu a fazer os doces conventuais, dos quais guarda, ainda hoje, as receitas que a doceira lhe passou.

Chef Hélio Loureiro

Doces quê? Conventuais? 

Hélio Loureiro discorda da designação, o que demonstrou várias vezes ao longo da conversa que manteve com AMARANTE MAGAZINE. E com argumentos de peso.

HL: Chamar-lhes doces conventuais, parece-me muito complicado. Nós gostamos mais de lendas do que da História! Muitas pessoas acham que todos os doces tradicionais portugueses são doces conventuais, o que não é verdade. Não há evidências, não há fontes, não há registos que apontem nesse sentido, pelo que é forçado dizer que os doces tradicionais de Amarante são conventuais. Há uns tempos, participei num programa de televisão, onde também estava uma senhora a apresentar o que ela dizia serem doces conventuais. Chamou-me à atenção um que misturava ovos, açúcar e amêndoa e perguntei-lhe onde tinha obtido a receita e ela disse-me que tinha sido ela a inventá-la…

AM: Qual é para o Chef a designação apropriada?
São doces amarantinos. Eu chamá-los-ia de tradicionais e não de conventuais. Nasceram no seio das famílias da terra e foram-se apurando. São marcadamente tradicionais e locais. Veja, os ditos doces conventuais de Amarante não têm nada a ver com os também ditos doces conventuais de Alcobaça, por exemplo.

Qual é, então, a explicação para a associação dos doces tradicionais aos conventos e mosteiros?
A ideia do paraíso é uma ideia doce. O Salmo 33, que está mal traduzido, diz: “saboreai e vêde como o Senhor é bom”. Mas, em latim, diz: “saboreai e vêde como o senhor é doce”!  As Sagradas Escrituras falam da “terra do leite e do mel”. Esta associação ao paraíso, ao bom, que é sempre doce, levou as pessoas a acreditarem que dentro dos conventos e mosteiros tudo era doce. E daí a ideia de que os doces são conventuais.

Decididamente, não são?
Não. Quando, no século XIX, se dá o fim das ordens religiosas, com a apropriação dos seus bens pelo Estado (1834), jocosamente deram-se aos doces tradicionais os nomes de “barriga de freira”,” papos d’anjo”, “fofinhos do convento”, “orelhas de abade”. Ora, nenhuma religiosa ou religioso se atreveria a chamar tais nomes a doces, que foram usados para denegrir aquilo que se passava dentro dos conventos, que era a suposição de que ali se comia à “tripa-forra”. A ideia que resulta do imaginário popular de freiras à volta das panelas a cozinhar, é uma ideia peregrina.

Lérias, papos d’anjo, brisas do Tâmega, S. Gonçalos, foguetes são, portanto, doces tradicionais de Amarante, que nasceram na comunidade, apontando-se para a existência de tradições doceiras em Amarante….
Os doces de Amarante, independentemente da designação – conventuais ou tradicionais – são de uma grande importância local e de um grande valor patrimonial nacional. Deixe-me dar-lhe um exemplo: a cidade do Porto não tem doces tradicionais. Se nós quiséssemos fazer uma mesa da cidade, teríamos de, forçosamente, ir buscar os doces a Amarante, que fazem parte do imaginário do Porto. A riqueza doceira de Entre Douro e Minho é feita com os doces de Amarante que iam (e vão) à mesa de requinte da burguesia da Foz do Douro. No passado, não só os banquetes da burguesia do Porto não dispensavam os doces tradicionais de Amarante, como, para as festas, eram contratadas doceiras de Amarante”.

Os doces tradicionais de Amarante comem-se acompanhados por chá, por café, ao pequeno-almoço, em receções… Como é que se faz  a sua harmonização com vinhos? 
Nos eventos em que participo, mesmo no estrangeiro, tenho sempre a preocupação de combinar vinhos portugueses com doces. Sobretudo o vinho do Porto Moscatel do Douro, ou mesmo de Setúbal. Há quem ache que doce com doce não combina, mas é tudo uma questão de temperatura. Por exemplo, um Porto Tawny, de dez ou vinte anos, bem fresco, acompanha na perfeição com doces de Amarante. Não sou adepto da harmonização com vinhos verdes em geral, por achar que o contraste tende a ser muito grande. Porém, com colheitas tardias, quando na temperatura certa, conseguem-se harmonizações fabulosas.

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