A Albergaria do Covelo do Tâmega

Terá sido aqui que existiu a Albergaria do Covelo, junto à "Casa da Câmara" (Foto de Eduardo Teixeira Pinto / cortesia de Pedro Barros).

Todos devem acolher com caridade e respeito os peregrinos, ricos ou pobres que regressem ou se dirijam ao Solar de Santiago, pois todo aquele que os acolha e hóspede com empenho, receberá como hospede não apenas São Tiago, mas também o mesmo Senhor, segundo as palavras do Evangelho: «Todo aquele que vos receba a Mim recebe.»

Capítulo XI, Codex Calistinus

A posição geográfica do actual Concelho de Amarante, na zona central do Norte de Portugal e no cruzamento de importantes vias de comunicação entre as Beiras, o Litoral Minhoto, o Douro Litoral e Trás-os-Montes; terá sido, na Idade Média, determinante para a instalação de algumas instituições vocacionadas para o acolhimento, o cuidado e a assistência a muitos destes viajantes, entre eles e com maior atenção, os peregrinos que pelo Vale do Tâmega se dirigiam ao Túmulo do Apóstolo das Hispânias, São Tiago. 

 A partir do séc. XIII, o peregrino que chegasse a Amarante poderia, antes de prosseguir para Guimarães, visitar o túmulo de São Gonçalo e a ermida onde o santo peregrino vivera. Ao longo da sua jornada visitaria ainda os Mosteiros de Telões, Caramos, Pombeiro e finalmente a Igreja da Colegiada de Santa Maria da Oliveira em Guimarães.  

Consta ainda que em Amarante, o número de peregrinos vai amentando ao longo dos anos, não apenas os de São Tiago, mas também os de São Gonçalo (a partir dos finais do séc. XIII). 

Neste contexto, em meados do séc. XII, a crer pela memória local, é instituída uma albergaria, a designada Albergaria do Covelo do Tâmega, localizada no final da actual Rua 31 de Janeiro (antiga Rua do Covelo). A sua fundação permanece na maior obscuridade, carecendo as fontes documentais e os vestígios materiais. 

No entanto, segundo esta memória, a sua instituição é contemporânea da Albergaria e Ponte de Canaveses e da igreja de Santa Maria de Sobretamega, cuja construção, por volta de 1150, é patrocinada por D. Mafalda de Sabóia, esposa D. Afonso Henriques e Rainha de Portugal[1] que contrariamente à Albergaria do Covelo, estão devidamente documentadas no testamento da soberana[2].   

Embora não se conheçam referências à instituição da Albergaria do Covelo na documentação da primeira Rainha de Portugal, a sua origem poderá ser da sua responsabilidade, em data aproximada às de Canavezes e de Moledo, circunstância que garantia, de modo mais eficaz, melhoramentos nas vias de comunicação e na assistência aos viajantes que passavam pelo Entre-Douro-e-Tâmega. Estas iniciativas da rainha foram da maior importância para a região, atendendo ao povoamento disperso que a caracterizava na primeira metade do séc. XII. Importa ainda referir que, à data, no actual termo da Cidade de Amarante, segundo as inquirições de 1343 realizadas à Ordem do Hospital, ocorriam com frequência assaltos a viajantes.

Segundo Pinho Leal, a Albergaria do Covelo poderá ter sido construída pela Condessa D. Teresa de Leão, mulher do Conde D. Henrique e mãe de D. Afonso Henriques, aquando da construção da albergaria da estrada de Lisboa na qual existiu uma inscrição com o seguinte texto: «Albergaria de pobres e passageiros da Rainha D. Teresa[3]». Assim sendo, a Albergaria do Covelo, por estar localizada na área de influência da condessa, seria uma das mais antigas de Portugal.

Por sua vez, o arqueólogo amarantino, José de Pinho, num artigo publicado em 1933, no Semanário Flôr do Tâmega (pouco antes da bárbara demolição da albergaria), partilha da opinião de Pinho Leal, afirmando que é obra das primeiras soberanas de Portugal (D. Teresa de Leão, D. Mafalda de Sabóia ou mesmo de D. Dulce de Aragão), sendo, na sua perspectiva, iniciativa de D. Mafalda de Sabóia. José de Pinho afirma ainda que a respectiva inscrição será falaciosa, até porque, a existir, deveria estar escrita em latim e não em português[4], atendendo ao seu estado ainda primitivo e vernacular, semelhante a um latim corrompido. 

Há ainda outros autores, entre eles, Frei Manuel da Esperança e o padre Francisco de Magalhães que atribuem a sua fundação à Infanta D. Mafalda, filha de D. Sancho I e de D. Dulce de Barcelona e, como tal, neta de D. Mafalda de Sabóia. 

Esta aparente confusão para com as duas figuras históricas não é de estranhar se se tiver em consideração o caracter carismático da infanta D. Mafalda e o seu legado na região, constituído por múltiplas fundações e bens que possuía, bem como da aura de santidade que desde cedo se manifesta. Outros factores que contribuíram para o acentuar desta confusão, foram a transmissão oral da memória, a curta distância cronológica e a abrangência territorial das suas propriedades e legados.

Pela descrição efectuada em 1933, sabe-se que a Albergaria do Covelo do Tâmega desenvolvia a fachada principal ao longo da primitiva configuração da rua. O alçado em granito, era de dois panos assentes a seco e encimado por uma cornija chanfrada que, por sua vez, descansava num renque de modilhões na sua maioria completamente lisos, apresentando apenas três ou quatro e de um só lado, uma pequena cavidade circular desprovidos de qualquer elemento decorativo. Esta fachada não apresentava nenhuma abertura para o exterior. A sensivelmente dois terços de altura da parede, e bastante separados um do outro, mas em linha horizontal, avançavam dois cachorros, com o respectivo entalhe superior, onde se firmava a viga de apoio da alpendrada, que devia correr a todo o comprimento da fachada. Os alicerces tinham uma profundidade de dois metros, firmemente assentes sobre a rocha à cota actual da Rua 31 de Janeiro. 

A fachada voltada a poente apresentava no pano interno uma janela de padieira chanfrada, exactamente como a cornija. 

José de Pinho não conseguiu determinar se o edifício tinha um ou dois pisos. Salienta ainda que se observavam várias fases construtivas que marcaram diversas intervenções de conservação e adaptação às necessidades dos tempos, atendendo à ampla utilização do edifício.

Albergaria seria um edifício românico, construído no séc. XII

Sabe-se também, e segundo a descrição existente no «Livro do Tombo que se faz de todos os bens, foros, rendas e propriedades, pertencentes à Casa do Hospital da Albergaria do Concelho de Gouveia anexo à Santa Casa da Misericórdia de Amarante», datado de 1650, mais concretamente no documento do Auto de Medição do Hospital da Albergaria do Covelo que o edifício, com cerca de 131 metros quadrados, se localizava junto à Casa da Câmara do Concelho de Gouveia de Ribatâmega; que da rua se acedia por intermédio de um lanço de escadas a um pátio murado com cerca de 328 metros quadrados; sob o muro de sustentação do pátio no terreiro, existia um fontanário, a fonte da albergaria, da qual ainda subsiste memória. Sabe-se ainda que existiam três edifícios residenciais anexos à albergaria que estavam aforados, bem como a própria Casa da Camara.   

Pela descrição efectuada, e de acordo com José de Pinho, a Albergaria do Covelo do Tâmega seria um edifício românico, construído no séc. XII, de construção simples e humilde, mas monumental, facto que evidência uma origem de iniciativa régia.   

 Ao contrário de outras instituições similares, tais como em Arêgos ou Marco de Canaveses, não existia nenhuma capela associada, quando muito um pequeno oratório, pelo que é de supor a pré-existência da Igreja de Santa Maria Madalena, que lhe ficava próxima, no largo das Navarras[5]

Tudo leva a crer, que seria nesta igreja sufragânea de Santa Maria de Lufrei, actual Divino Salvador de Lufrei, que se prestava o auxílio e acompanhamento espiritual dos peregrinos e convalescentes da albergaria. Seria também nesta igreja que reuniria e viveria em local próximo, uma comunidade de beguinas[6], também designadas de Madalenas[7] que se dedicariam ao acolhimento e cuidado dos peregrinos, dos doentes, dos órfãos, das viúvas e desfavorecidos recolhidos na albergaria. Seria também na igreja e respectivas imediações que se sepultariam todos os que aqui perecessem. 

Esta comunidade terá tido uma duração efémera, pois segundo a documentação da Igreja de Santa Maria Madalena, nada mais consta ou refere a sua existência e sendo ela sufragânea de Lufrei, poderá ter sido extinta em data anterior ou igual a 1455, ano que marca o fim do Mosteiro do Divino Salvador de Lufrei, do qual apenas restou a sua igreja que fora secularizada e assim passou à categoria de Paroquial. 

Em meados do séc. XII, com a chegada de um frade dominicano que viria ser a conhecido por São Gonçalo, Amarante deixa de ser mais um local de passagem para peregrinos e converte-se também num ponto de chegada e permanência de peregrinos que, à medida que a Idade Média caminha para o seu termo, são cada vez mais, despoletando e adensando a malha urbana da cidade para a configuração actual. 

Aquando da passagem do exército napoliónico, na madrugada do dia 2 de Maio de 1809, a Albergaria do Covelo é incendiada, mas, pouco depois, seria novamente restaurada; em 1827, os foros e propriedades rendiam 50 000 reis, no entanto, os encargos totalizavam 110 000 reis que eram gastos com o acolhimento de mendigos que aqui podiam pernoitar apenas uma noite; com as guias que lhes eram fornecidas; com roupa e com a manutenção do edifício. 

Se até aqui a albergaria do Covelo acolhia peregrinos de Santiago, agora passava também a acolher peregrinos de São Gonçalo e é a estes que se refere um documento pertencente à Santa Casa da Misericórdia de Amarante, mais concretamente um alvará de 12 de Janeiro de 1614, através do qual D. Filipe II de Portugal (III de Espanha) autoriza a anexação, para a Irmandade da Misericórdia, da Albergaria do Covelo juntamente com os respectivos rendimentos, a fim de melhor poder acolher os peregrinos que vinham à Romaria de São Gonçalo, por não serem suficientes os espaços do Hospital da Misericórdia da Rua da Ordem. Perante este alvará, a Albergaria do Covelo do Tâmega que a,é então, era administrada directamente pelo Concelho de Gouveia de Ribatâmega, passa para a posse da Santa Casa da Misericórdia de Amarante, com mais aptidão para a causa social.

O acto de posse ocorre a 7 de Março de 1614 e nesse mesmo dia realiza-se o inventário de todos os seus bens, apresentados pela hospitaleira Domingas Pinta, que se passam a citar: duas cobertas velhas; uma manta rota que não servia; quatro panos que serviam de lençóis muito velhos e rotos; e três leitos muito velhos.   

Perante o rol apresentado, constata-se que a albergaria não funcionava condignamente, não detinha de rendimentos suficientes e não possuía um administrador. Os seus rendimentos anuais totalizavam os 20 000 reis, aplicados em pobres e doentes do Hospital, na manutenção do edifício e na reparação das casas que lhe pertenciam. 

Entretanto, passado algum tempo, a albergaria é desafectada das funções assistências e converte-se numa sala de audiências ao serviço da Câmara de Gouveia de Ribatamega, como faz saber Francisco Xavier Crasbeeck ao menciona-la, em 1726, nas suas memórias Ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho. 

Aquando da passagem do exército napoleónico, na madrugada do dia 2 de Maio de 1809, é incendiada, mas, pouco depois, seria novamente restaurada; em 1827, os foros e propriedades rendiam 50 000 reis, no entanto, os encargos totalizavam 110 000 reis que eram gastos com o acolhimento de mendigos que aqui podiam pernoitar apenas uma noite; com as guias que lhes eram fornecidas; com roupa e com a manutenção do edifício. 

Em meados do séc. XIX, aquando da entrada em funcionamento do Novo Hospital da Misericórdia, actual Lar Conselheiro António Cândido, a albergaria é alienada e vai sendo ocultada por construções posteriores que a absorveram, vindo a surgir novamente em 1933, aquando das demolições para efeitos do alargamento e regularização da actual Rua 31 de Janeiro. 

Apesar de ter reaparecido e, segundo os registos da época, até ser possível preservar o edifício, a velha Albergaria do Covelo do Tâmega, de gosto românico, acabaria também por ser demolida, restando, por algum tempo, o seu fontanário que, pouco depois, seria também desmantelado.    


[1] – Recorde o nosso artigo sobre D. Mafalda de Sabóia: https://www.amarantemagazine.pt/sociedade-e-cultura/d-mafalda-de-saboia-uma-rainha-no-baixo-tamega.[2]– «Porem faço carta de testamento, ou de couto mui firme por esta guisa. Leixo o meo Passo de Canaveses, que eu figi, en que eu pousei en quanto mandei fazer a ponte de sobre Tâmega: a qual morada de Passos deixo por esprital com os foros e rendas, que eu hei naquelles lugares, freguesia de São Pedro e de Santa Marinha de Fornos, a saber: os leixo aforados, e que tudo se pague ao dito esprital com a minha apresentação da igreja de São Pedro, cabeça de cappella, que figi sobre o rio Tâmega, com as azenhas do rio de Passo, que eu figi, e que não estemende outras, se não renderem para o dito sprital, com as portagens das ditas freguesias, que eu ende hi…» «…E o dito esprital será sempre limpo, e bem cuberto, com portas cerradas, e com camas, en que bem posão jazer nove pilingrinos, os, que serão aprezentadas rações en de entrada, en de partida, e mais lume, e sal; e finando-se alguns dos piligrinos, seja enterrado com três misas de sobre altar e com pano e sera…»
[3] – D. Teresa de Leão, filha de Afonso VI Leão por ser filha de rei intitulava-se rainha. À data, existia uma certa confusão entre o real significado de rei ou rainha, título pelo qual eram também designados os infantes.
[4] – Diga-se galaico-português. A Língua Portuguesa só se torna na Língua Oficial do Reino de Portugal em 1297.
[5] – Designada por Igreja de Santa Maria Madalena do Covelo, mais tarde, por Igreja de Santa Maria Madalena de Gestaço. Surge documentada pela primeira vez em 1258.
[6] – Mulheres recolhidas que vivem em comunidade de pequena dimensão, dedicando-se à causa social ou à meditação, embora não professem em nenhuma ordem religiosa. A partir do Séc. XIV, algumas destas comunidades ingressam nas Ordens Terceiras Mendicantes, dando assim origem a mosteiros femininos.  
[7] – Por terem Santa Maria Madalena por padroeira e exemplo de vida contemplativa.

Bibliografia:

AMEAL, João; Santos Portugueses; Porto, Livraria Tavares Martins; 1957.  CRAESBEECK, Francisco Xavier da Serra, Memórias Ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho, no Ano de 1726; Vol. I e II; Ponte de Lima; Edições Carvalhos de Basto; 1992.
LOPES, Maria José Queirós; Misericórdia de Amarante, Contribuição para o seu Estudo; Amarante; Santa Casa da Misericórdia de Amarante; 2005.
MAGALHÃES, Padre Francisco de Azevedo coelho; História Antiga e Moderna da Sempre Leal e Antiquíssima Villa de Amarante (Edição fac-similada); Amarante; Câmara Municipal de Amarante, 2008. 
MARQUES, José; A assistência aos Peregrinos, No Norte de Portugal, Na Idade Média in Actas do I Congresso Internacional dos Caminhos Portugueses de Santiago de Compostela, Porto; 1989.
PINHO, José de; Materiais para o Estudo do Povo Amarantino, A Albergaria do Covelo do Tâmega; in Semanário Flor do Tâmega; 29 de Outubro de 1933; ano 47, nº. 2 443; Amarante.
PINHO, José de; Materiais para o Estudo do Povo Amarantino, A Albergaria do Covelo do Tâmega; in Semanário Flor do Tâmega, 5de Novembro de 1933; ano 47, nº. 2 444; Amarante.
PINHO, José de; Materiais para o Estudo do Povo Amarantino, A Albergaria do Covelo do Tâmega; in Semanário Flor do Tâmega; 12 de Novembro de 1933; ano 47, nº. 2 445; Amarante.
SILVEIRA, José Augusto da Silva et LOPES; Maria José Queirós; Misericórdia de Amarante 480 anos; Amarante, Santa Casa da Misericórdia, 2009.

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