A representação do pecado da luxúria no românico de Amarante

O pecado da luxúria no românico de Amarante

Ao chegarmos junto do portal ocidental do mosteiro de São Martinho de Mancelos e, ao contemplarmos a riqueza escultórica desta entrada para Jerusalém Celeste, notamos que as mísulas que sustentam o tímpano, encontram-se esculpidas com um homem e uma mulher, querendo simbolizar, na nossa opinião, o Adão e a Eva. Eva é considerada a primeira tentadora e, desde então, a luxúria é feminina, sendo a culpa mais grave que a mulher podia incorrer.

O principal papel que a mulher (Eva) interpreta no Antigo Testamento é o de instrumentum diaboli – uma ferramenta do diabo – que causa a perdição do género humano, através da tentação da carne, sendo as relações sexuais consideradas causa de impureza física e espiritual no homem, mesmo que fosse com a sua esposa legítima.

Esta associação entre tentação e a mulher agravou-se, a partir de meados do século XI, com as posições de certas ordens religiosas, como a de Cluny ou de Cister, que promoveram um forte declínio da posição feminina. Chega-se a escrever que era preferível o homem aproximar-se de um fogo do que de uma mulher jovem. A mulher era vista como um perigo para os homens, pois proporcionava-lhes a oportunidade de desencadear os seus instintos mais baixos e de cair no pecado carnal. E ninguém conseguia escapar! Nem mesmo os fundadores de ordens religiosas, como veremos mais adiante.

Voltando novamente ao portal principal do mosteiro de Mancelos temos, frente a frente, Adão e Eva (homem e mulher), lembrando o desafio que os fiéis enfrentavam: o pecado de uma pessoa (Eva) pode ser transmitido a muitas outras (homens), logo a necessidade de preservar as virtudes face aos vícios.

Também no mosteiro do Salvador de Travanca, há uma cena cujo simbolismo estará próximo do referido para Mancelos. Num capitel, na nave central, deparamo-nos com a figura de uma mulher rodeada por homens, sendo que todos eles estão, aparentemente, acorrentados abaixo do tronco como que, simbolicamente, subjugados ao pecado.

As sereias são demónios – quase exclusivamente femininos – que, segundo versão no primeiro livro de Enoque, seriam as mulheres dos anjos caídos. Desde sempre, foram consideradas como o símbolo da tentação diabólica através da luxúria, sendo sedutoras, significando as mulheres loucas que atraem os homens com a carícia dos seus cantos e encantos. Este ser fabuloso pode apresentar-se como sereia-pássaro ou sereia-peixe, sendo esta última a mais comum.

De acrescentar que, a sedução poderia ser realizada de outras formas, incluindo a música e a dança. Se hoje em dia são atividades comuns, inócuas, sem qualquer maldade à priori, nos tempos medievais a música e a dança, praticadas por mulheres, eram ações censuradas devido à conotação com a sedução, porque ao contorcerem-se e ao cantarem levavam à perdição. Esta associação, levou posteriormente à relação entre as mulheres e as sereias. Estas últimas, ao cantarem prendiam os homens às seduções do mundo.

As sereias são demónios – quase exclusivamente femininos – que, segundo versão no primeiro livro de Enoque, seriam as mulheres dos anjos caídos. Desde sempre, foram consideradas como o símbolo da tentação diabólica através da luxúria, sendo sedutoras, significando as mulheres loucas que atraem os homens com a carícia dos seus cantos e encantos. Este ser fabuloso pode apresentar-se como sereia-pássaro ou sereia-peixe, sendo esta última a mais comum.

A sereia-peixe (metade mulher, metade peixe) é um motivo de origem assírio-babilónico, embora tenha sido a arte grega a transmiti-lo à arte da Europa ocidental.

Neste tipo de representação, as sereias podem ter cauda simples ou dupla. Um dos motivos para a representação com dupla cauda estará na necessidade de se garantir a simetria dos capitéis românicos, proporcionando uma imagem completa de ambos os lados.

Uma outra característica, a par das caudas, são os seus longos cabelos flutuantes, que os pregadores medievais comparavam a uma rede afrodisíaca que capturava os homens. 

Este ser mitológico e sedutor encontra-se representado na igreja do mosteiro do Salvador de Travanca, nomeadamente em capitéis do portal lateral norte, da capela-mor e das naves. 

Os dois capitéis com sereias no portal lateral norte são de cauda única, procurando com a sua beleza, sedução e doce canto seduzir os herdeiros do céu para a perdição. Ao mesmo tempo, estas sereias com a sua mão esquerda agarram um peixe, simbolizando as almas que a sereia apanhou. Ou seja, a representação contrária à versão do Divino Salvador que, nas suas redes, recolheu as almas (os peixes).

No interior do espaço religioso, na nave norte, após a entrada pelas Portas do Céu, podemos encontrar um capitel com duas sereias de dupla cauda, enquanto num outro encontramos outras duas, de cauda única, sendo que estas últimas agarram um peixe numa das mãos. De indicar que estas duas representações no interior da igreja possuem certas feições masculinas. Embora Réau tenha escrito que existem sereias com semblantes masculinos, esta representação poderá, também, introduzir o tema do Tritão, o luxurioso, a vertente masculina do pecado carnal. Olivier Beigbeder defende esta simbologia considerando não ser justo atribuir à parte feminina a culpa do pecado carnal quando este é praticado a dois. Adverte que iconograficamente temos, por vezes, os pares: onde existe uma sereia, existe também um tritão.

Encontramos, novamente, representações com semblante masculino na capela-mor, lado da Epístola, numa base de coluna, sendo que, aqui, a curiosidade reside nos dois seres estarem unidos, através do cruzamento das suas caudas, como que fazendo a alegoria a uma rede a que ninguém escapa.

De toda a iconografia presente em Travanca, possivelmente o tema da luxúria é dos mais figurados. Existem, pelo menos, sete representações em capitéis e bases, com referências a seres lendários, direta ou indiretamente, relacionados com a simbologia da luxúria. 

Ainda no interior, na nave sul, num outro capitel, temos outras duas sereias em que a cauda de cada uma está a ser mordida por um animal, possivelmente um leão, num sinal de castigo por seduzir! Devemos advertir que o leão, na simbologia cristã, pode significar tanto o benigno como o maligno, podendo representar Cristo ou Satanás consoante o contexto. Neste caso, julgamos que o leão está associado ao bem, encontrando-se a morder o mal (a sereia sedutora).

Para além das sereias ou de tritões, há quem refira ainda a existência de harpias – outro ser mitológico, híbrido e com rosto feminino – que pretendiam ilustrar os vícios do homem. Segundo interpretação de Xosé Lois García, esta figura fabulosa pode ser observada num capitel, na abside norte da igreja, onde duas harpias ilustram os vícios mundanos e as paixões viciosas a que os homens estavam sujeitos.

De toda a iconografia presente em Travanca, possivelmente o tema da luxúria é dos mais figurados. Existem, pelo menos, sete representações em capitéis e bases, com referências a seres lendários, direta ou indiretamente, relacionados com a simbologia da luxúria. 

Este dado quantitativo possibilita, de certa forma, constatar a afinidade entre a vida do fundador da Ordem Beneditina e o posterior discurso moralizante dos beneditinos, com a representação plástica deste pecado nos catecismos de pedra, com a intenção de afastar os monges residentes e o público geral da luxúria.

De recordar que, Bento de Núrsia (480-547), o fundador da Ordem Beneditina foi objeto da tentação, através da imagem de uma mulher: certo dia, no decorrer da sua juventude eremítica, Bento viu uma mulher que, mais tarde, o diabo fez o jovem eremita revê-la em pensamento, devido à sua beleza, não conseguindo conter uma forte tentação carnal. Tinha mesmo decidido deixar o deserto com intuito de satisfazer o seu apetite sexual. Mas, de súbito, a Graça Divina desceu sobre ele, e Bento tendo perto de si silvas e urtigas, despiu-se e lançou-se, nu, para o meio dos espinhos e das urtigas, conseguindo extinguir o fogo do seu pecado. 

Coincidência ou não com o episódio narrado, a Ordem Beneditina na Regra do Glorioso Patriarca São Bentoe nos seus discursos começou a destacar, com alguma insistência, para os perigos da sedução femininaPor exemplo, no primeiro capítulo da Regra que guia a vida monacal beneditina, é exposto que Deus ajuda os eremitas da Ordem na luta “contra os vicios da carne, ou dos pensamentos”. Mais adiante, no capítulo 7, dedicado à Humildade, é sugerido a cada monge que: “trate & cuide sempre em seu animo a vida que está aparelhada pera os que temem a Deus, & guardandose cada hora dos peccados & vicios, do pensamento, da lingoa, dos olhos, das mãos, dos pés, & da propria vontade, ponha diligencia em apartar de si os desejos da carne.” 

Ainda no mesmo capítulo é exposto que os monges se deviam “guardar de todo mao [mau] desejo, porque a morte está posta á porta do deleite.”

Partindo do pressuposto que o esculpido na pedra era a mando do encomendador, a experiência pessoal e os ideais do fundador passaram para a oralidade e para a escrita e, depois, para a pedra, lembrando a todos, que residiam ou frequentavam o mosteiro, os perigos da experiência deste pecado carnal.

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