Amarante é uma cidade inclusiva?

Faz em breve quatro anos, publicámos, na nossa edição em papel, uma reportagem que tinha Rosa Lemos como protagonista e que evidenciava as dificuldades que as pessoas com deficiência têm para se deslocar em Amarante: para irem ao banco, às compras, passear na cidade ou jantar fora. Rosa Lemos, então Presidente da delegação local da Associação Portuguesa de Deficientes (APD), guiou-nos pela cidade, mostrou-nos os pontos negros da mobilidade, as barreiras arquitetónicas, os postes plantados no meio dos passeios, as passadeiras sem saída, as rampas intransponíveis, as casas de banho que ignoram deficientes, as paragens de transportes públicos inacessíveis para quem se desloca em cadeira de rodas, os autocarros sem rampa elevatória… Quatro anos depois, nada mudou. Rosa já não preside à APD. “Fizeram-me a folha”, disse a AMARANTE MAGAZINE. Republicamos, aqui, a primeira parte daquela reportagem.

E se fosse consigo?

Poucos terão consciência deste número, mas, em 2001, existiam, em Amarante,  3.000 deficientes. Dito de outro modo, 5,2% da população do Município era, à época, deficiente. Surpreendido(a)? Os dados são oficiais e foram apurados pelo penúltimo Censo. O de 2011 é omisso quanto a esta matéria, mas é de admitir que não haja grandes variações. Ora, perante um número tão elevado de deficientes, apetece perguntar como estão a ser salvaguardados os seus direitos legais e de cidadania e que condições lhes oferece a sociedade para lhes facilitar o seu dia-a-dia. Por exemplo: que olhar tem sobre a cidade um cidadão com mobilidade reduzida, que, no seu dia-a-dia, tem que se deslocar numa cadeira de rodas? Ou por outras palavras: Amarante é uma cidade acessível? Colocámos esta questão à presidente da delegação de Amarante da Associação Portuguesa de Deficientes (APD). A sua resposta foi um rotundo NÃO.

Rosa Lemos nasceu em Figueiró, Amarante, há 40 anos. Quando tinha 32 foi atirada para uma cadeira de rodas, em consequência de uma doença degenerativa que lhe reduziu drasticamente a mobilidade. A mesma doença que a obrigou a abandonar a licenciatura em Ciências da Comunicação, na Universidade do Porto, cujas instalações tinham demasiadas barreiras para a sua nova condição de “deficiente”. Uma simples ida à casa de banho transformara-se em algo muito complicado, quer em termos de acessibilidade, quer pela inexistência, na Faculdade, de WC adaptados.

Estava no segundo ano do curso, desistiu de o continuar e iniciou aí uma luta pela sua própria mobilidade, tendo estabelecido um objetivo preciso: tal como as pessoas sem deficiência, Rosa Lemos quer poder aceder a serviços e edifícios públicos autonomamente, sem quaisquer ajudas; poder atravessar ruas em passadeiras que não vão de encontro a passeios intransponíveis; dispor de rampas com inclinações adequadas para cadeiras de rodas; poder aceder a casas de banho adaptadas; transpor portas com larguras pensadas para casos como o seu; ser atendida em balcões apropriados; poder entrar em lojas para comprar roupas, sem ter que pedir que lhas levem a casa para experimentar; poder aceder a caixas multibanco, ir a supermercados e restaurantes, ao cinema e ao teatro. 

Rosa passa parte substancial do seu tempo no Porto, onde tem um apartamento e dispõe de condições que lhe permitem cuidar melhor da sua saúde (faz fisioterapia e terapia ocupacional) e retardar a progressão da doença de que sofre. Mas também porque decidiu que tem que enfrentar sozinha as suas dificuldades e, afirma, preparar-se para o futuro.

“A minha mãe já tem 70 anos e não vai durar sempre. Se eu continuasse a viver com a minha mãe, seria ela que me prepararia as refeições, que faria a maior parte das tarefas… Eu faço questão de ser autónoma, de encarar e vencer as dificuldades que encontro. Quando a mãe me faltar, terei consolidadas as minhas rotinas e estarei mais preparada para enfrentar o dia-a-dia”, diz Rosa com convicção.

“Na minha vida quotidiana, socorro-me de toda a gente. Por exemplo, se chego a casa e não consigo tirar a cadeira do carro, peço ajuda à primeira pessoa que passe na rua. Quando tenho consultas médicas, vou sempre sozinha. Já me perguntaram se não tenho ninguém que vá comigo, se fui abandonada! Eu vou sozinha porque quero enfrentar as dificuldades e, ao pedir ajuda, estou a fazer ver aos outros que sou diferente e que tenho o direito de que o mundo em que me movimento se adapte às minhas necessidades”, enfatiza.

Rosa Lemos é Presidente da delegação de Amarante da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) e tem travado aqui uma luta que considera inglória: seja mobilizando outros deficientes, para os levar a defenderem os seus direitos, seja sensibilizando entidades públicas e privadas para as causas da deficiência. Uma delas é o direito à mobilidade. À pergunta sobre se “Amarante é uma cidade acessível”, Rosa Lemos responde, assertiva, num misto de tristeza e revolta.

“Não, de maneira nenhuma. Amarante, por si, já tem um relevo difícil. Se tivermos em conta as barreiras existentes, a mobilidade fica muito complicada, desde logo pela falta de algo tão elementar como são as rampas. E nos poucos casos em que existem, a maioria delas torna-se intransponível por não ter a inclinação correta”.

E dá exemplos: “eu gostava de perceber como é que as pessoas que andam em cadeira de rodas conseguem ir, sozinhas, à Repartição de Finanças… Não conseguem. O único acesso existente é através da rampa que foi colocada ao nível do rés do chão do edifício Carvalhido, mas ela é de tal forma inclinada que nenhuma pessoa com mobilidade reduzia consegue transpô-la sozinha. E mesmo com ajuda é difícil! A legislação prevê uma inclinação de seis por cento para as rampas, mas raramente se respeita esta norma. No caso da repartição de Finanças de Amarante, mesmo que eu conseguisse subir a rampa e chegar ao primeiro piso, não sairia dali. O acesso aos serviços é feito pelas escadas do prédio…”, alerta.

Quem se desloca em cadeira de rodas não tem acesso aos serviços de Finanças de Amarante

Direito à indignação

“Ao fim de muitos anos a passar por situações de discriminação, e de ter que pedir para ser ajudada a subir degraus, ligo para as lojas ou para os bancos para que venham ter comigo à rua e me atendam ali. Ou, então, se me querem atender no interior, que sejam os seus funcionários a virem ter comigo ao carro e a transportarem-me”, diz Rosa, com revolta.

“Quando vou ao banco, procuro estacionar o mais próximo possível da porta e os funcionários vêm ter comigo ao carro e sou atendida ali. É uma situação desagradável, mas que eu faço questão que exista, porque se alguém me levar para dentro da agência, os seus responsáveis nunca vão perceber que o banco não é acessível e jamais alterarão a situação. Esta é também uma forma de sensibilização para as nossas dificuldades, para mudar mentalidades. Porque só percebendo bem os nossos problemas é que os outros nos vão ajudar a resolvê-los”.

Mas não é só a falta de rampas ou a sua incorreta conceção que dificultam a mobilidade de quem anda em cadeira de rodas. Rosa Lemos releva, a este propósito, a escassez de lugares de estacionamento na cidade destinados a deficientes e o facto de, muitas vezes, serem ocupados por viaturas de pessoas sem deficiência. “Nestes casos, não hesito, ligo para a GNR e peço a sua intervenção”, diz.

O reconhecimento dos direitos de cidadania dos deficientes não se resume a questões de mobilidade, seja na rua ou em edifícios, públicos ou privados. Passa também pela existência de algo tão elementar como casas de banho adaptadas, de apoio a serviços públicos, por exemplo, ou na própria via pública. Em Amarante, na via pública, pura e simplesmente não existem. Noutros casos são muito difíceis de encontrar. De apoio a serviços, curiosamente, só mesmo nos que dependem do Município. A generalidade dos serviços dependentes da Administração Central (Tribunal, Finanças ou Conservatória do Registo Civil) não disponibilizam WC adaptados para os seus utentes.

Rosa Lemos acha que estas (e outras) lacunas e obstáculos que complicam a vida das pessoas com deficiência não resultam da falta de orçamentos de quem planeia as cidades e os edifícios ou procede aos licenciamentos. A explicação está, acredita, na falta de sensibilidade e no desconhecimento. E, por isso, defende, desde logo, que as organizações que representam os deficientes deveriam ser chamadas pelas autarquias a dar pareceres sobre licenciamentos urbanos e implicadas na produção de legislação aplicável. Ela própria, enquanto Presidente da delegação de Amarante da APD, já fez sentir junto da Câmara local a necessidade desta colaboração, convicta de que, por via dela, muitos problemas não existiriam ou seriam minorados.

A figura do “Provedor dos Deficientes” nos Municípios não lhe agrada. “Não tenho uma imagem muito favorável da função, refere. Em muitos casos é um entrave. Depende da pessoa que tem essas atribuições mas, muitas vezes, funcionaliza-se e deixa de lutar pelos direitos das pessoas com deficiência, para cumprir as ordens que lhes são dadas superiormente. Por isso, é preferível que as organizações que representam os deficientes cheguem junto dos poderes e tratem dos seus assuntos diretamente. Aquilo que eu vejo é que o provedor, estando integrado nos Municípios, perde  poder reivindicativo, quando até podia ser uma mais valia”.

Amarante, Turismo e Cidades Inclusivas

Estudos de entidades ligadas ao setor do Turismo indicam que as pessoas com deficiência influenciam a escolha dos destinos de férias das famílias. Como? Na altura de programar as suas férias, são tidos em conta vários fatores que hão de determinar a decisão final sobre o local a escolher: a existência de mar ou rio, a qualidade do ambiente, a hotelaria, os programas de animação, a oferta cultural, a gastronomia e as tradições… 

Aquelas famílias onde um ou mais dos seus membros tem deficiência acrescentam a estes fatores um outro, invariavelmente decisivo: destino inclusivo. E isto significa que a cidade escolhida há de estar preparada para receber cidadãos com deficiência, designadamente cidadãos com mobilidade reduzida, e idosos. Ou seja, a cidade tem que ser inclusiva, tem que ser para todos.

Amarante Magazine perguntou a Rosa Lemos que avaliação faz da cidade de Amarante nesta área. 

“Conseguir atrair a Amarante pessoas com mobilidade reduzida e suas famílias implicaria que a cidade oferecesse condições que, de facto, ainda não oferece. De acessibilidades na via pública, mas também em termos de oferta hoteleira, designadamente. Há tempos fui questionada por pessoas com mobilidade reduzida sobre a existência de hotéis acessíveis na cidade, porque pretendiam vir cá passar um fim de semana e, nesse sentido, consultei dois, para saber se o eram. Disseram-me que sim, mas, na realidade, nenhum deles o é. Quando os visitei, verifiquei que um, no quarto que destinou a cidadãos com deficiência motora, a porta que dá acesso à casa de banho não tem largura suficiente para passar uma cadeira de rodas. E lá dentro, a casa de banho não é adaptada, tem apenas uma barra de ferro. O outro não é acessível a partir do exterior. Tem uma rampa, mas com uma inclinação muito grande”, refere com tristeza.

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